sexta-feira, 5 de abril de 2013

ESTÁTUA DE PAPEL MACHÊ


Por trás dos ombros do Chefe, dos seus cabelos grisalhos – telepaticamente – líamos a carta convite. Três parágrafos exíguos. Sem dizer uma palavra concordamos que o convite era a última volta da espiral da queda. O que faltava para completar a figura do bufão. Eu sabia, o Chefe nunca planejou nem sonhou com essa trajetória ridícula, mas cada passo o conduzia para esse desfecho pífio.

Quando foi que comecei a perceber o extravio?

Como todos, o Chefe tinha as melhores intenções. Quando estreou no palanque era um deus incandescente. Na sua voz vibravam nossas palavras, dizia o que nossa alma queria gritar.

Lembro que depois da maior das manifestações o Chefe voltou realizado para a sede, queria beber para arrefecer o fogo da História que o conduzia. Parecia um anjo maroto portador da Verdade. Exibia nos olhos utopias e esperanças.


Foi no meio de uma dose de cachaça que me dei conta que ele, meu colega de classe, encarnava todos nossos desejos de romper com o passado. Nele residia o espírito do futuro, o mapa das nossas esperanças. A alegria e a certeza dessa emoção nunca esmaeceram. Desde fui um satélite orbitando em torno dele.

Monolítico, o Chefe jamais teve dúvidas, avançava depressa. Ganhou popularidade, seguidores, falanges... Contudo as concessões, tergiversações, meias verdades começaram a se acumular. Ele topava tudo, quando questionado garantia que estava abrindo estradas para todos passarem, que às vezes era preciso molhar os pés.

Demorou, mas vi as primeiras máculas nas asas do anjo.

Eu, conselheira e acompanhante fiel, voluntariamente eclipsada, assistia a rede de favores se armar, suja e abjeta. Justificar cada ‘sim’ passou a exigir uma longa cadeia de lógica dúbia e arrevesada. De repente, estarrecidos, nos flagramos dizendo mentiras fáceis. Aí era tarde demais, nossa alma e o espírito do futuro já estavam solapados. Éramos compelidos a transgredir e enganar sem muita convicção.

Bêbada pelas desrazões eu também tudo consentia.

Entretanto, um dia o castelo de mentiras ruiu. Instável e cheia de estalos a construção desabou. Urgia comprar cumplicidades, tolerâncias, pagando com a derradeira moeda que nos restava: nossos sonhos rubros mas já desbotados. Estarrecidos, descobrimos que o preço não era caro. Cínica, paguei minha parte sem lágrimas. O Chefe já não percebia o travo amargo desses desembolsos, afoito negociava novos acordos com parcelamentos mensais.

Acabamos de ler a carta juntos. Silenciosos concordamos que a solicitação para servir de modelo para o Boneco Mamulengo carnavalesco do carnaval de bairro não lhe caia mal, era um recibo popularesco e colorido pela venda dos nossos escrúpulos.

Contudo, foi sozinha e decepcionada que conclui: para o Chefe o papel machê era mais apropriado do que o bronze dos patriotas.

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