sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Carta de Ricardo Reis para Mário de Andrade


Rio de Janeiro, 10 de Dezembro 1935

Querido Mário de Andrade:

No começo de nossa amizade, em 1921, firmamos um ‘pacto pagão’. Combinamos que nossas conversas seriam sempre face a face, francas e livres. Sem segredos nem discussões religiosas, políticas ou morais. Penso que fui eu a propor o acordo porque tenho a cabeça panda de incoerências. Sobre Religião coleciono certezas absolutas, sobre Política (como monarquista ou sebastianista sem rei) não sei me explicar direito e ainda estou inventando uma moral para caber dentro dela.

Concordamos, acima de tudo, em não trocar correspondências. As cartas são como fotografias, tentam deter o rio de Heráclito. E as relações humanas são dinâmicas, repletas de nuances, até as lembranças são falazes e enganosas. Sempre é melhor conversar, viver o momento e falar da cor real de cada coisa. Sei que és um missivista compulsivo e que nossos encontros são esparsos, mas calculo que a decisão foi acertada.

Estou quebrando a regra acordada porque fui te procurar em S. Paulo e não encontrei. Sabes que, no Brasil, és meu mais próximo e confiável amigo. Era imperativo te falar sobre as estranhezas que aconteceram comigo duas semanas atrás.

Todas as tribulações começaram num espelho, no fundo de um corredor numa quinta no Cosme Velho.
Era quarta feira, dia 27 de novembro, estava visitando uma amiga e, antes do jantar, fui lavar as mãos. Quando me olhei no cristal prateado vi-me refletido como um retrato em preto e branco. Assustado, fiquei atento aos detalhes e percebi que a sombra também havia sumido. O efeito durou uns cinco minutos, depois tudo voltou ao normal. Conclui que foi uma vertigem, um delírio ou um mal estar e não dei muita importância.

Na quinta feira, dia 28, minhas descolorações se amiudaram. As superfícies espelhadas, às vezes, me refletiam sem cores, desbotado, como uma fotografia antiga ou uma gravura sépia. Meus movimentos pareciam segmentados, de marionete, como num filme de cinematógrafo. Acordei sexta feira, 29, cintilante. Nos espelhos um homem tremeluzente me fitava, cambiando continuamente entre colorido e sépia.

Resolvi tomar o primeiro trem para S. Paulo para conversar contigo. Tive a precaução de escolher ternos, camisas, gravatas e chapéu claros ou brancos e passar numa farmácia. Apresentei-me como médico e falei de uma doença estrangeira. O atendente me olhou espantado e confuso, mas foi solícito, recomendou, para disfarçar, um desses artifícios que as mulheres usam para empoar o rosto.

Cheguei a tua paulicéia desvairada sábado bem cedo, me hospedei no Hotel Esplanada e tentei, o dia inteiro, falar contigo. Não consegui. Todos nossos amigos comuns me avaliavam ressabiados, e todos corroboraram que depois da tua nomeação para Diretor do Departamento de Cultura tinhas sumido do convívio, andavas sempre ocupado, sem paradeiro conhecido e sem tempo para nada.

Permaneci no hotel decidindo o que fazer. No meio da tarde, lá pelas quatro horas, duas coisas aconteceram, uma surpreendente outra inesperada. Primeiro, de repente, a cor do meu corpo se estabilizou. Havia me transformado, permanentemente, numa personagem de fita de cinema, um homem vivo em preto, branco e tons de cinza, nenhuma outra cor participava do espectro. Ainda estava me acostumando com a nova situação quando Juzé, aquele sábio português que mora na Ladeira da Memória, bateu na minha porta.

Lembra-te? Quando me apresentaste a ele garantiste que já estava no Brasil na época do descobrimento. Agora quase acredito nisso. Juzé soubera que andava à tua procura e gostaria de ajudar no que pudesse. Apreciei a solicitude e a disponibilidade dele, conversamos a tarde inteira e acabamos jantando juntos.

Foi boa a palestra, o homem acompanhava tudo o que estava acontecendo nas letras portuguesas, e especialmente no nosso grupo. Havia conhecido Alberto Caieiro e gostava de ler Fernando Pessoa, Álvaro de Campos e meus poemas. Durante a conversa Juzé fez uma previsão enigmática, disse que num mundo mais estável Fernando ganharia o Prêmio Nobel. Não entendi direito e ele não quis se auto decifrar.

Mário, falei-te muito desses poetas e mostrei-te vários poemas deles. Também já discutimos a relação esquisita que existe entre nós quatro e nossas obras. Às vezes desconfio que dividimos o mesmo espirito (ou a mesma alma cristã). Parece que vasos comunicantes ligam os quatro num mesmo inconsciente compartilhado. Alguns poemas meus são pensamentos de Fernando ou Álvaro escritos com minhas palavras. E alguns poemas deles são meus sentimentos transcritos de outro jeito. Tudo que acontece com cada um de nós afeta todos os outros.

Mas voltando ao Juzé, quando lhe contei sobre minha metamorfose cromática ele escutou meu relato atenciosamente, porém perguntou apenas quais as últimas noticia que tinha de Fernando e Álvaro. Respondi que não sabia nada de novo. Fiquei aturdido, ao invés de discutir minhas mudanças de coloração ele só murmurou “isso acontece” e se embrenhou em parábolas intrincadas.

Enumerou as turbulências que estavam varrendo o mundo: a revolta comunista no Brasil; a mudança de governo em Portugal; a revolução da Espanha; as agitações na Alemanha e Itália. Explanou que havia excesso de tensão nas fibras e tramas da realidade, ficava fácil eclodirem e prosperarem situações e desdobramentos bizarros. No fim da noite Juzé me acompanhou até a estação, antes do trem partir me aconselhou efusivamente a voltar para Portugal o mais breve possível.

Sabes tudo sobre minha pessoa, Mário. Sou ataráxico na ação, gosto de observar o mundo sem tomar partido e sem me imiscuir nele. Meu desejar é intempestivo, sempre estou no local errado por motivos erráticos, querendo estar em outro lugar. Fiquei quase 20 anos no Brasil, cogitando voltar a Lisboa, sem me decidir a partir. Agora vou, já reservei as passagens. Tenho sonhado muito com Fernando. Toda noite, no amanhecer, ele aparece de mansinho e me lembra: “precisas voltar”.

Nosso ‘pacto pagão’ está suspenso até discutirmos novas regras. Se receber cartas tuas lerei com prazer. Mas quero ressalvar, poderei ser omisso nas respostas. Não gosto de escrever cartas pessoais nem tirar fotografias. Evito deixar atrás de mim pedaços mumificados da existência. Assim, depois do que contei, espero-te em Lisboa, porque não aposto voltar ao Brasil.

Um abraço

Ricardo Reis.

P.S. - Antes de fechar a carta soube que Fernando Pessoa morreu no dia 30 de Novembro às oito horas da noite. Quatro no Brasil, exatamente no momento em que virei personagem de cinema ou desenho a crayon. Preciso entender melhor isso.


7 comentários:

  1. O tempo de um corpo ectoplasmático conter sua alma em algum lugar adormecido, não usa e pressupõe regras, mas, como ele será a voz e a mente daquele que afinal sua passagem se propagou?
    Ou ele me tornou uma pessoa, um ser enquanto ser, uma visão dele em um corpo por nele se deliciado, satisfeito perene daquele mundo que a ambos não compreendia?

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  2. @nelsonteixeira.com, A ideia original do conto vem de Saramago, uma brincadeira com o livro 'O Ano da Morte de Ricardo Reis', mas, obviamente, comporta outras leituras, inclusive algumas espiritualistas.

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  3. Antonio Montes, Obrigado pelo comentário. Seria uma carta historicamente possível.

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  4. Das tristezas e dores da alma humana!!!Dos cinzas que dominam nosso olhar,quando estamos tristes.Da pré cognição do momento da chegada da morte. Pode ser tudo isso,um pouco disso,ou simplesmente a fala do artista.

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  5. Obrigado Ida Guttenberg, o mundo é vasto e nosso saber escasso.

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  6. Transcrito do Facebook - Comentário do Musicólogo e Poeta José André Lôpes Gonçâles (André Da Ponte)
    “”Isso que tu escreveste, meu caro Douglas Bock, é do melhor que tenho lido nos últimos tempos. Sei que tanto Pessoa (ou o seu alter-ego Ricardo Reis) e Mário de Andrade dão para um bom jogo de encontros e desencontros, mas a cousa não está no próprio jogo, todavía no relato desses encontros e oposições. O final fica muito emocionante desde que Mário de Andrade sabe do pasamento do latinista, monárquico, poeta um bocado epicúreo e estoico. E aí entra em jogo Saramango que em O Ano da Morte de Ricardo Reis afirma que: "sábio é aquele que se contenta com o espectáculo do mundo". Você nesse texto abalroa a literatura. Parabéns, meu caro.””

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