quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

'Le Horla' - O Monstro que Veio de S. Paulo


O Horla (Le Horla) é um conto de terror escrito em 1886 pelo francês Guy de Maupassant, considerado um dos maiores contistas da Literatura Ocidental. Também é apontado como uma das principais fontes do Horror Cósmico e do Movimento Weird, gênero que mistura Terror, Fantasia e Ficção Científica. Influenciou H.P.Lovecraft, Stephen King, o Universo Alien e varias legiões de monstros.

Uma curiosa e macabra honraria. O autor informa que ‘Le Horla’ – o terrível monstro do conto  teve origem na Província de S. Paulo por volta de 1850.

"E aqui está, meus senhores, para acabar, um pedaço de jornal que me chegou às mãos e que vem do Rio de Janeiro. Eu leio: “Uma espécie de epidemia de loucura parece grassar há algum tempo na província de S. Paulo. Os habitantes de várias aldeias fugiram, abandonando terras e casas e pretendendo-se perseguidos e comidos por vampiros invisíveis que se alimentam de sua respiração enquanto dormem e que, além disso, só beberiam água e às vezes leite!”

O Horla Guy de Maupassant (primeira versão – 26/12/1886)

O estrupício nebuloso, depois de grassar e submeter os paulistas, chegou à França através de uma galera brasileira que, festiva, navegava pelo Rio Sena.

"Ah! Ah! lembro-me, lembro-me da bela galera brasileira que passou debaixo das minhas janelas, subindo o Sena, no dia 8 do passado Maio! Achei-o tão bonito, tão branco, tão alegre! O ser vinha nele [sic passim], vindo de lá, onde a sua raça nascera! E viu-me! Viu a minha casa também branca; e saltou do navio para a margem. Oh! Meu Deus?"

O Horla – Guy de Maupassant (segunda versão – 1887)

Bom! Contando o epistolário jesuíta, não é a primeira vez que atribuem à Cidade de S. Paulo a origem de todos os males.

Intrigado com ‘Le Horla’, este nosso antepassado sampaulista, escrevi um conto imaginando as aventuras do monstro na garoa e neblina da cidade de S. Paulo, populada pelos estudantes de Direito e bem no meio do Movimento abolicionista.

Quem tiver interesse o conto está sendo publicado na revista 'Diário Macabro n. 4', veja site:
https://www.facebook.com/groups/2167394793577904/?fref=nf





sábado, 24 de fevereiro de 2018

Blade Runner 2049 - A Morte e a Morte de Joi


Blade Runner 2049 não recebeu indicação para o Oscar, mas foi o melhor filme do ano. Talvez competindo com Dunkirk, sobretudo por causa do sofisticado andamento jazzístico – de três tempos descompassados  premeditado por Nolan.

Nenhum outro lançamento foi tão visionário, contundente e atual. Nenhum competidor apresentou tantas indagações e questionamentos sobre nosso incerto futuro, compartilhado e dependente de gadgets. Com os aplicativos extrapolando dos aparelhos e invadindo as ruas e o cotidiano. Nenhum discutiu melhor as alternativas, limites e potencialidades da humanidade.

Visualmente ousado, inovou sobre a arquitetura cyberpunk, decadente, escura, pessimista e disruptiva do BR-19, inspirada nos Filmes Noir. Mostrou o futuro como uma rota de fuga enganosa, corroída e sobrecarregada de erros, lixos e excessos do passado.

Horrível. Arrastado. Genial. Repetitivo. Longo demais. Melhor que o anterior. Todas avaliações são possíveis. Contudo, como não se maravilhar e estarrecer com os subúrbios de Los Angeles, geométricos, fractais e vazios? Replicantes avariados e homens decaídos empilhados em favelas hi-techs? Não se espantar com Las Vegas pós-apocalíptica e deserta, com abelhas guardando escombros da memorabilia americana? Um mundo surtado, alucinado e disfuncional. Além da previsível surpresa de transformar a sensual Rachael na madona de uma nova raça?

Sempre é bom relembrar que BR-49 é uma continuação. Sequências enfrentam problemas, os mesmos das montagens de óperas. Precisam inovar e explorar as possibilidades do tema e do enredo, sem trair demais a música e o livreto. A analogia seria melhor se tivessem reutilizado a trilha original de Vangelis, numa releitura quem sabe.

BR-49 levou cinco estrelas, contou uma história parônima de BR-19. Um caso de amor avassalado por uma investigação com interesses divergentes, conflitos, violências e perigos – como é clichê nos Filmes Noir – reprisando uma paixão entre duas entidades ontologicamente diferentes. As tramas têm similaridades, contudo as tessituras são distintas. Villeneuve é mais espesso e intrincado do que Scott. Em 2019 o emprenho de Deckard é contido pela meta padrão dos detetives: cumprir a missão e ter sossego. Em 2049 o impulso de ‘K’ é a jornada do herói, desvendar sua origem e mudar o mundo.

Entretanto, como BR-2049 é uma sequência, porta o vírus do Filme Noir: gira em torno da femme fatale. Assim, Joi, a omnipresente e cambiante Joi, a aplicativo-heroína da saga, hiper emanada pelas ruas, outdoors luminosos, avatares gigantes e lares tristes, é a personagem mais inspirada do filme, vale a pena acompanha-la em close-up.

As aproximações com Her são inadequadas e desavisadas, o filme de Jonze trata do amor impossível com uma entidade inescrutável, não de uma parceira ou relação capaz de redimir (ou consumir) o homem.

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A comparação entre Rachael e Joi comporta muitas estranhezas. A replicante de ‘olhos verdes’ ( Clique ) era única, idealizada como humana perfeita, a dúvida que persistia era se tinha alma ou não. A holograma, ao contrário, não tem corpo, é um aplicativo ultra multiplicado, produzido em série e distribuído para a Terra e outros nove mundos – aparentemente – com o mesmo rosto, funções e características. As questões propostas para a femme fatale tremeluzente são, ao menos, duas. Seria possível amar uma especial entre tantas iguais? A Joi-holograma pode  se rebelar e evoluir? 

Na primeira aparição de Joi é como a ‘Siri’, intrometida, inoportuna, brincando de casinha, dando informações desnecessárias e fazendo sugestões atrapalhadas. Capaz de variar roupas e penteados sem alterar o rosto. Então ganha de presente do ‘K’ replicante o ‘emanador’. Upgrade contido num controle que permite a ela escapar do apartamento, se materializar e acompanhar o namorado em qualquer lugar. Então experimenta a chuva – a recorrente metáfora da saga Blade Runner – e as coisas começam a mudar.

Na participação seguinte, quando ‘K’ descobre os filhos de Rachael, parece que Joi já sabe muito sobre ele. Porque, através do ‘emanador’, pode ouvi-lo e observa-lo o tempo todo, mesmo pausada. Durante a cena de fusão se comporta como uma companheira cúmplice, interessada e ciumenta. ‘Não prefere a sua chefe?’ Comenta que é apenas um aplicativo, simples e binario, feita de ‘1 e 0’s, porém ‘K’, por causa das memorias envolvendo um cavalinho de madeira, pode ser especial, filho unigênito da replicante grávida, nascido de um ventre, um milagre.

Segundo as premissas da Inteligência Artificial, uma entidade é ‘senciente’ quando demonstra consciência, intenções e sentimentos. Todo o discurso de Joi reforçando as arriscadas esperanças do namorado sugere (talvez por se sentir amada) que ela tenha ‘senciência’. Resta a questão: natural e espontânea ou atribuída e programada?

Em outra sequência, no fim do segundo segmento do filme, Joi, lindíssima, com um vestido oriental (homenagem a Meggie Cheung do filme ‘Amor à Flor a Pele’ de Kar-way Wong) recebe Mariette, a prostituta replicante, contratada para ajudar, através do truque da ‘incorporação’, ela e ‘K’ experimentarem a sensação de sexo real.

As falas de Mariette são buracos de minhoca no roteiro, relevam coisas e ligações. Num trecho anterior, quando ouve a som do ‘emanador’ (Pedro e o Lobo de Prokofiev) comenta: ‘Você não gosta de mulheres reais’. Talvez ai – Joi pausada, porém alerta – tenha tido a ideia do ‘ménage à trois’. Depois do encontro com Joi/‘K’, ao partir, Mariette provoca Joi. ‘Eu já estive dentro de você. Não há tanto aí como você pensa’.

No bloco final, na busca por Deckard, Joi, para evitar que suas memorias prejudiquem o parceiro, pede ao namorado para apaga-la da rede/nuvem e baixa-la no ‘emanador’. Mesmo sabendo que, se o ‘controle’ for destruído, ela morrerá. ‘Sim. Como uma garota de verdade’. É um ‘spoiler’, porque Joi é morta pisoteada por Luv, a replicante vilã. Suas últimas palavras, correndo em direção a ‘K’, são intrigantes: ‘Eu te amo’. 

Abre parênteses. O melhor meio de esconder o fundo romântico – que muitos julgam inevitável em qualquer obra de arte – é com discursos racionais. Mesmo em laboratórios extraterrestres Wallace não descobriria porque Raquel engravidou e Joi ganhou consciência. Talvez só o amor explique. Fecha parênteses.

Como ela própria disse, Joi é um conjunto de comandos, uma longa sequência de zeros e uns. Passível de ser baixada da rede/nuvem para um equipamento. Feito uma foto comprometedora, que depois de transitar pela Web, é impossível ter certeza absoluta que já foi apagada. Sempre pode sobrar uma cópia dela em algum lugar inesperado.

Uma boa aposta seria Mariette, que na transa em três colocou um sinalizador no do bolso de ‘K’, o que permite resgatá-lo depois do encontro com Luv. Joi, ou uma versão antiga de Joi, pode subsistir dentro do cérebro replicante de Mariette, que já teve a ‘femne fatale’ dentro dela e sabe que a aplicativo ‘não é tanto quanto pensa que é’.

O filme – exceto pela cintilante reaparição de Rachael – poderia acabar aqui, porque a outra morte de Joi acontecerá na continuação, em dois mil e alguma coisa.


Outros textos sobre Blade Runner 

O Caçador de Androides, o Quarto Chinês e o Teste de Turing



quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Romance Policial – Os Adictos


Antes da Internet – que só chegou ao povo em 95 – os adictos do vício elegante de ler Romances Policiais tinham nas cabeceiras das camas uma pilha de livros. Imprescindíveis para atravessar noites de insônia e madrugadas brancas. Nunca diminuíam, apenas variava o tamanho e os títulos empilhados.

Nestas reservas estratégicas (mantenho a minha ativa até hoje) nunca faltavam os clássicos: Rex Stout, Georges Simenon, P.D.James, Mickey Spillane, Ngaio Marsh, Dorothy L. Sayers, alguns em edições difíceis de ser encontradas. Autores mais novos, de coloração vária, recém-lançados ou descobertos, também frequentavam o acervo: Patricia Cornwell e a Médica-Legista Dr. Kay Scarpetta, Harry Kemelman e o Rabino David Small, Donna Leon e o Comissário Veneziano Guido Brunetti, John Dunning e policial bibliófilo Cliff Janeway.

Era sempre eletrizante descobrir. na legião de novos escritores, os mais exóticos, de vários sabores e outras geografias: Michel Chabon e o mundo judeu, Andrea Camilleri e o Comissário Salvo Montalbano da Sicília, Manuel Vásques Montalbán e o Detetive (ex CIA?) Pepe Carvalho de Barcelona. Além de Luiz Alfredo Garcia-Rosa e o Inspetor Espinosa, genuinamente cariocas. Conan Doyle e Agatha Christie só entravam no monte para eventuais releituras.

Paulo Francis, o polêmico jornalista, que também era dependente do vício elegante e devia ter seu próprio mocó, escreveu que sempre era fácil reconhecer seus iguais pelo mundo afora, quando parava defronte as estantes de Policiais nos aeroportos e livrarias. Intuía que os companheiros – além de competidores por um eventual último volume – eram uma classe especial de pessoas, não importava a origem. Sabia que depois de um whisky o papo tinha tudo para rolar bem.

Os fãs de Romances Policiais devem ter uma conformação mental singular, apreciam contraposições e cabos de forças: exceções e regras, mundos diferentes e cenários conhecidos, transgressões e ordem, crime e castigo. Porque, mais  que tudo, desejam compreender os mecanismos que operam tudo isso.

Os mestres do gênero precisam saber um pouco de magia, podem adotam ou desrespeitar qualquer regra, desde que consigam preservar o mais importante: manter o mistério.

A ‘cor local’. Detalhes, peculiaridades, pequenos segredos, restaurantes, locais típicos, bares, lojas, costumes e gastronomia da região em que acontecem as histórias.

As 'tramas'. Patrícia Highsmith, através de Ripley, inovou na narrativa. Suas histórias são contadas pelo simpático meliante confesso que nos induz a torcer para que seus truques e tentativas de enganar as autoridades e inimigos deem certo. Interessante abordagem, pena que escreveu apenas cinco novelas.

Os 'personagens excêntricos'. Lembram de Hercule Poirot? Nero Wolfe, o rotundo detetive de Rex Stout é o mais estrambótico. Pesa 150 quilos, preguiçoso, prepotente e presunçoso. Orquidófilo fanático, leitor voraz, hedonista gastronômico e glutão. Claustrófobo, jamais saia de casa, seu auxiliar, Archie Goodwin, precisa convencer todos os envolvidos no caso a visita-lo. Gostaria de ver uma boa série da Netflix com ele.

A revista Playboy (ou outra, minha memória ás vezes me engana) perguntou a varias pessoas: 'se não fossem elas, quem gostariam de ser'. Paulo Francis respondeu Nero Wolfe.

Então seriam três – ou uma multidão – porque também queria.