Faz três anos que o Professor Cláudio Esteves é meu instrutor de ‘permeação’, a arte de transitar entre realidades alternativas. O dom – ou superpoder – de viajar por tempos paralelos depende de uma mutação genética invulgar, que contempla um indivíduo em cada três milhões. Como qualquer doença rara, aberração ou graça divina.
Meu ‘treinador temporal’, para quem conhece sua dupla biografia,
é famoso por duas especialidades e uma extravagância. Dentro da Ordem Nova
Templária Miçtomundos, o Cavaleiro Esteves figura entre as maiores
autoridades na técnica ‘permeante’, o deslocamento por mundos múltiplos. Na
vida linear está entre as sumidades na Filosofia de Aristóteles, respeitado tanto
na São Paulo matriz, quanto na Sampaulo da Vertente 1641 (a derivação temporal
criada pela Ordem naquele ano [Clique >>> SAMPAULO: VERTENTE 1641]). Sua excentricidade é mais discreta e
popular: torcedor de futebol, apaixonado, obstinado e compulsivo.
Não entendo nada de ficção-científica e realidades
multiplicadas, exceto o que aprendi com Juzé – o Cavaleiro Tempo-templário José
Abrantes – descobridor do dom ‘permeante’ que possuo e meu mentor na Ordem. Explicou
que as famosas e milenares rotas terrestres, como o Caminho de Santiago, a Rota
de Seda e a Appalachian Trail, funcionam
como veios místicos e telúricos que envolvem o globo inteiro. A América do Sul
é cortada pela Trilha de Peabiru, que vai do Atlântico ao Pacífico – e passa
pelo centro de São Paulo. E, mais importante que tudo, em alguns pontos destas trajetórias
extraordinárias existem portais que permitem a transição entre tempos
paralelos.
Tudo é muito confuso, fico desnorteada com a topologia multifacetada
destes mundos sobrepostos. Para complicar as coisas, sou noviça na Ordem e Juzé,
meu amigo há 15 anos, está retido na Vertente 1641 por causa das oscilações quânticas
do portal. A ligação entre São Paulo e Sampaulo ficará fechada por 21 anos, é impossível
transitar entre as cidades siamesas enquanto durarem as turbulências.
A única alternativa para comunicação com Juzé é trocar
bilhetes e cartas, mas a logística é complicada. As mensagens são transportadas
por ‘permeantes’, que voltam no tempo, até antes do fechamento do portal, e
deixam as remessas com depositários. As correspondências (e eventuais pacotes) são
guardadas para serem entregues aos destinatários nas datas especificadas. Um
exercício de paciência, pode demorar anos, os papeis chegam envelhecidos e
amarelados. Apesar de que, no tempo absoluto, o envio e a remessa, a escrita e a leitura, podem ser próximos, até simultâneos.
São estes paradoxos que me atrapalham. Sou uma moça
romântica, sócia do Clube de Leitura de Jane Austen,
tenho Mr. Darcy perto do coração, tatuado debaixo do seio esquerdo. Portanto, estudar
‘permeação’ é uma provação, prefiro ler poesias e novelas. Talvez para me
distrair, ou facilitar minha integração na Ordem, Juzé conta fofocas sobre os Monges
Tempo-templários residentes em São Paulo. Na última carta sugeriu que
perguntasse ao Professor Esteves sobre o Campeonato Sampaulista de Futebol de
1911, e o que achava de Maradona.
Perguntei sobre o campeonato. O Professor Cláudio Esteves sorriu
constrangido, depois gargalhou, digerindo devagar um orgulho dissimulado.
“Melhor saber desta história
direto por Juzé, aposto que a versão dele será muito mais interessante e confiável.
Silogizando: sou torcedor e apaixonado, logo, parcial e tendencioso.”
Lembrei da segunda questão. “O que acha de Maradona?”
“Outra isca do canalha
Juzé, que tem pretensão a profeta?” Continuava de bom humor. “Quem viu a performance de Ferenc Puskás regendo
os Mágicos Magiares em 1954; depois testemunhou o garbo do Kaiser Franz
Beckenbauer comandando a Seleção Alemã em 1978; só pode achar que Diego Armando
Maradona é uma involução. Tem talento mas não elegância, nas quatro copas que
assisti parecia um orangotango conduzindo a bola, meio empurrando, meio
tropeçando nela”.
Escrevi para Juzé contando minha conversa com o Cavaleiro
Esteves, mencionei meu espanto com o desprezo pelo jogador argentino, quase agressivo.
Quinze dias depois chegou uma carta longa, relatando as tribulações futebolísticas
do meu treinador, em folhas amareladas e vincadas, porque esperaram quatro anos
para serem lidas.
***** ***** *****
Saudades e carinhos, querida Marina Camargo.
A história que vou contar é interessante, não sei se
verdadeira, porque as versões, como os mundos múltiplos, bifurcam e trifurcam
até o emaranhamento.
Dentro da comunidade Tempo-templária Cláudio Esteves é um
radical livre, um torcedor fanático de futebol. Vem de uma família de
fazendeiros sampaulistas, entrou para a ordem em 1820 e construiu dois currículos
admiráveis. Entretanto, na virada do século XX, estudando na Alemanha,
desenvolveu um extremado interesse pelo novo esporte inglês. Como é esbelto,
ágil e flexível, e se mantem em forma, virou um bom jogador. Nos tempos
amadores defendeu valentemente – com o apelido de Clauves – o Clube Atlético
Sampaulistano. Ás vezes ainda arrisca algumas peladas.
Certamente deve saber, Marina, que os adictos do futebol
adoram os martírios e deleites reservados apenas aos que se propõem a torcer. Apesar de não
conseguirem explica-los para adventícios. São capazes de guardar velhos
rancores e fazer loucuras pelos seus clubes do coração. Clauves é fanático pelo
CAS – Clube Atlético Sampaulistano, o time de maior torcida em Sampaulo. Talvez
o desprezo por Maradona venha dai, das derrotas do CAS contra times argentinos,
mais sequelas de família dos tempos da Guerra do Prata.
Para agravar, como Esteves também é cavaleiro ‘permeante’ e
tem vida longa, pôde realizar façanhas impensáveis para o homem comum.
Participou, com o amigo Charles Miller, da introdução do futebol nas duas
cidades paralelas. Assistiu todas as Copas do Mundo. Acompanhou das
arquibancadas todos os Campeonatos Paulistas e Sampaulistas. Contudo, sua maior
façanha, foi intervir nestes dois campeonatos em 1911, e influenciar nos resultados.
Apesar dos rigores formais de sua cátedra, seu treinador,
moça, é um torcedor irracional – um holligan lógico – não respeita limites no futebol. Viajando pelo futuro, fazendo prospecções e extrapolações, Clauves
concluiu que o CAS e o CAP – os times replicados nas cidades paralelas – não
teriam grande destaque na história futura do futebol. O que era injusto na sua
visão do mundo da bola. Então, analisando as condicionantes, concluiu que um
bom ponto de flexão desta tendência indesejada seria o ano de 1911. Se preparou
para consertar as coisas.
O grande adversário se chamava AAP-Associação Athlética das
Palmeiras, bicampeã dos
anos 1909 e 1910. Era uma equipe em ascensão, ameaça açambarcar seu clube querido.
Sobretudo, porque dividia com o CAS a representação do segmento mais conservador
e afluente da torcida. Pior ainda, possuía inclinações muito mais elitistas, só admitia no time doutorandos,
engenheiros e bacharéis de Direito.
O plano de Clauves era intrincado e astucioso, precisava
fortalecer uma terceira força, o Sport Club Germânia (o atual Pinheiros,
Marina), para derrotar e desbancar a Athlética das Palmeiras. A primeira
providência foi alegar um período sabático, solicitar afastamento do CAS em 1910
e se eclipsar. Em segredo acompanhava atentamente todos os preparativos do Campeonato
de 1911. De inicio ajudou os irmãos Francisco
e José Vaz (ex Sport Clube Internacional, suspenso pela Liga) a se transferir para
o clube teutônico, que escolheu como ferramenta para seus intuitos.
Na primeira
quinzena de Junho de 1911 as coisas ficaram complicadas, por sorte as
armações também estavam maduras. A Athlética ainda mantinha amplas chances de
ganhar o titulo, Clauves decidiu reverter a situação. Disfarçado, junto com
outro recém-emigrado, solicitou filiação ao clube alemão. Como previamente acordado
foram aceitos, eram exímios futebolistas, aumentariam bastante as forças germanistas.
O jogo chave entre Germânia e Athlética aconteceu em 16 de
julho no Velódromo Sampaulista, perto da Basílica da Consolação. Era decisivo, a
AAP precisava vencer para preservar suas pretensões ao tricampeonato.
Entretanto, o azul-negro entrou em campo com dois estreantes, desembarcados da
Europa: Wilhelm Baumgartner, craque da ponta esquerda, comparável a Arthur
Friedenreich, e um jogador inominado, que as crônicas não guardaram memória. O
jogo avançava equilibrado. Indignada e desesperada a APP esgotava todos seus recursos
técnicos, porém, quando o placar chegou a 4 a 3 contra, a violência deselegante
explodiu. Um atleta foi ferido na cabeça e dois outros expulsos, a plateia
entrou em campo e o juiz encerrou a partida e declarou o Germânia vencedor.
A Ordem ficou
estarrecida com o abuso e petulância do Cavaleiro Cláudio Esteves, resolveu agir
para minimizar as manipulações temporais indevidas. Entretanto, os Monges
Tempo-templários também têm simpatias, torcem por times diferentes. Algumas
predileções pensaram e as correções foram erráticas e dirigidas. Atualmente, é quase
impossível garantir quais desdobramentos são lineares e normais e quais foram
induzidos. Como resultado, o Futebol Brasileiro daquela época ficou difícil de
entender, porque abriga uma excrescência histórico-temporal. Não suficiente
para gerar uma nova Vertente, as fibras do tempo foram capazes de fagocitar o
nó-cego de futuros truncados.
A Liga Sampaulista
de Foot-Ball não acatou a reclamação da AAP sobre as irregularidades nas
inscrições dos alemães e confirmou a vitória do Germânia. Sublevada a Athlética
das Palmeiras, como já havia feito antes, se retirou do campeonato em protesto.
Nos anos seguintes foi decaindo até se dissolver. A maioria dos atletas aderiu
ao CAS, que passou ciclotímico pelo período de profissionalização, mas se
firmou – para alegria do
Cavaleiro Esteves – como a equipe mais popular da Vertente 1641.
A Liga Paulista
de Foot-Ball, na tua S. Paulo, validou a vitória do Germânia, e, mais uma vez, a AAP se retirou
da competição. Porém, na São Paulo matriz, a Athlética e o Paulistano
continuaram adversários ferrenhos até a profissionalização do futebol, quando,
1929/30, abandonaram as disputas oficiais.
Posteriormente, jogadores das duas agremiações dissolvidas, atletas que aceitavam a profissionalização, se uniram
para formar o São Paulo Futebol Clube. Misturando as cores do CAP e Athlética.
Para desgosto do Professor Cláudio Esteves, o novo time não alcançou a mesma prevalência do CAS da outra realidade.
Marina, para você que
convive com o Professor Esteves é conveniente saber que, de acordo com as conversas livres e não oficiais no
interior da Ordem, a frase final do parágrafo anterior deveria ser reescrita com
os seguintes acréscimos e ênfases: “Para desgosto, E APESAR DOS ESFORÇOS, do
Professor Cláudio Esteves, o novo time AINDA não alcançou a prevalência do CAS
da outra realidade”.
Porque, os
Cavaleiros da Ordem não têm dúvidas, o torcedor fanático trabalhou, trabalha e
trabalhará para moldar os Campeonatos Sampaulista e Paulista aos seus desejos e
vontades. É bom salientar que o facínora Clauves tem como identidade secreta um dos
melhores ‘permeantes’, capaz de se mover entre as realidades com rapidez e
eficácia fantásticas. Poucos detectam ou percebem seus rápidos deslocamentos temporais.
Nas cidades simultâneas a presença do Cavaleiro é quase ubíqua, não é incomum participar
de duas reuniões ao mesmo tempo.
Um beijo, Marina, preserve o olhar
esperto e atento de Elizabeth Bennet.
Juzé
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