Esperei uma semana inteira antes de entrar no Beco
dos Arquitetos, evito transitar no mesmo espaço-tempo da polícia. Não gosto do
jeito como os gambés nos olham. Para as pessoas grandes os anões são
invisíveis, todos parecidos. Ninguém consegue enxergar direito o rosto dos
Meios. Quando nos fitam, ao invés de ver, projetam em nossas faces uma imagem
qualquer que trazem pronta na cabeça, de algum livro, circo ou filme. Quase
sempre com as feições de uma criança esquisita. É melhor assim, passamos
despercebidos, viramos coletivos indistintos. Os meganhas são diferentes – deve
ser o treinamento – nos encaram esquadrinhando cada traço, comparando com algum
catálogo de aberrações.
Por isso fiquei distante, esperei tranquilo que
fizessem o trabalho deles, coletassem as provas e fossem embora.
Dei mais dois dias para evitar problemas, e só depois entrei no beco. De bicicleta, igual um moleque, no fim da noite, na mesma hora em que o garoto foi atacado. Tinha lido os jornais, assistido os noticiários e ouvido as conversas. Mas era pouco, precisava compreender direito o que estava acontecendo. Suspeitava que algum anão excluído do Consenso estivesse envolvido ou precisando de ajuda.
Dei mais dois dias para evitar problemas, e só depois entrei no beco. De bicicleta, igual um moleque, no fim da noite, na mesma hora em que o garoto foi atacado. Tinha lido os jornais, assistido os noticiários e ouvido as conversas. Mas era pouco, precisava compreender direito o que estava acontecendo. Suspeitava que algum anão excluído do Consenso estivesse envolvido ou precisando de ajuda.
As últimas reportagens informavam que o rapaz
permanecia em coma. Havia sido lacerado por algum animal desconhecido, ou –
pelas informações desencontradas – um bando de bichos juntos: tigre, lobo,
macaco, tamanduá, gavião ou pela própria quimera grega. Estavam tentando
reimplantar o braço esquerdo arrancado.
Da entrada da viela, uns trinta metros distante, um
amigo assistiu a agressão. O relato era cinematográfico, uma sequência de luta
num filme de horror mal iluminado. Mencionava garras, dentes, bicos, pelagens,
manchas, patas e asas, porém sem esclarecer nada. Meteco, a testemunha, ouviu gritos
de socorro da vítima sobrepostos por grunhidos, berros e silvos. Tudo muito
rápido, simultâneo, um turbilhão de cores, brilhos e movimentos. A investida
durou pouco, acabou de repente e o agressor desapareceu sem correr para lugar
nenhum.
Confessou que não entrou na passagem porque tinha
medo. Rivo era mais corajoso, ousava atravessar o beco a qualquer hora da
noite. Às vezes encontrava coisas jogadas pelo chão. Chaveiros, carteiras,
bolsas, raramente dinheiro. Voltava gozando do amigo e contando vantagem. O
garoto ferido, nos momentos de lucidez, contou história semelhante, com mais
desespero e menos detalhes.
*****
Os Meios sabem que possuem uma vantagem sobre os
humanos. Além dos cinco sentidos têm o Consenso. Algumas premonições e
sentimentos de perigo, estranheza ou urgência podem sem compartilhados
telepaticamente com o grupo inteiro.
Nos últimos meses uma dissonância cinza,
proveniente de dois perigos imprecisos tem incomodado os anões. O
desaparecimento de uma garotinha de sete anos e a mania mais recente do bêbado
Nicola. Os episódios, por si mesmos, não afetam diretamente nosso povo, porém
nos assusta e inquieta. Por causa dessas rugosidades no Consenso me interessei
pelo ataque no Beco dos Arquitetos. Quando agrediram o garoto, naquele lugar,
fiquei intrigado e interessado, porque os dois outros incidentes repercutidos
pelos anões também envolvem grafites e Arte de Rua.
A garotinha desapareceu enquanto brincava perto de
um muro grafitado com risonhos rostos de felinos amistosos. O único depoimento
sobre o acontecido veio de sua amiguinha. Contou que o gato desenhado se
desprendeu do muro, conversou com Ecila e convenceu a menina a segui-lo para
dentro do muro. Não havia nenhum indício de violência. Ninguém viu nada e poucos
acreditavam na versão do desenho vivo e falante. Não consegui examinar os
grafites suspeitos, dois dias depois da alegada abdução, o dono do terreno
mandou repintar o muro para se livrar das perguntas é do assédio dos curiosos.
A participação do bêbado Nicola na saga é mais
complicada e estranha. O cara é um doido que fala sozinho e vive caminhando
erraticamente pelos desvãos do Bixiga. A esquesitice de sua loucura é discutir com
grafites. Nos últimos tempos, depois do misterioso rapto da garotinha,
dedicou-se a cochichar com os insólitos coelhos brancos de olhos rubros – uma pintura
estilo vazado – que começou a proliferar pelas paredes do bairro.
Suas conversas com as lebres replicadas retomavam
sempre o mesmo assunto: Nicola se recusava a acompanhar o animal pintado que
pedia sua ajuda para salvar uma fadinha perdida. Ninguém levava muito a sério a
nova versão das suas insanidades. Porque, periodicamente, encontrava um motivo novo
para justificar suas dementes desavenças com os grafites. Além disso, o coitado
tem bom coração, devia estar assustado e desejando ajudar no desaparecimento da
menina.
Quando tentei questionar as pessoas sobre a
infestação de coelhos brancos nos muros do Bixiga, as respostas tergiversavam,
sugeriram propaganda, ou, quem sabe, uma piada maldosa e de mau gosto
relacionada com a tragédia da guria.
Entretanto, foram os ferimentos sofridos pelo
garoto que me deixaram preocupado. Trata-se de lacerações verdadeiras, constatadas
e documentadas pelos médicos. Por isso, enquanto esperava que a polícia se
afastasse, fui examinar os coelhos brancos de perto. Eram apenas cópias vazadas
comuns, porém, às vezes, repentinamente, pareciam se encher de cintilações e
reflexos. Os olhos vermelhos rebrilhavam e os pelos se eriçavam.
O Povo Miúdo acredita, respeita, entende e teme estas
interpenetrações de realidades que acontecem nos painéis cosmogônicos, nos
murais, nas velhas paredes decoradas e – atualmente – nos grafites. Sabem que são
janelas e biombos que podem interligar dimensões e universos avessos e
paralelos.
Para os espichados, os desenhos das lebres de olhos
vermelhos e gatos sorridentes continuam sendo apenas aberrações absurdas,
inexplicáveis e incompreensíveis, como todos os outros grafites. Porém os anões
desconfiam que as resplandecências e oscilações das lebres remetem a coisas
muito mais perigosas do que engodos da imaginação.
******
Os becos pululam em qualquer cidade. Compõem uma
geografia esquecível e impossível de cartografar. Compartilham da mesma
imperceptibilidade dos Meios, são discretos e quase invisíveis. Eclodem como
caminhos impostos pelo acaso e pela necessidade. Nos bairros planejados parecem
resultar de deslizes e lapsos dos urbanistas; nas cidades antigas resguardam os
traçados das forças da natureza. São como buracos de vermes, interligam dimensões
e lugares distintos e incongruentes.
Os anões sabem que becos grafitados são intersecções
instáveis, duplamente perigosas, nódulos onde universos e realidades dissimilares
se tocam.
O Beco dos Arquitetos rutilava, era uma típica
ponte para o além. Abandonado, entulhado, esquecido, provisório e perpetuamente
inacabado. Cheio de pixos retos e grafites fantásticos e fosforescentes. Tudo
nele convergia para uma parede nos fundos de um depósito de bebidas. Um hiato,
um vão azul sujo e mal delimitado, mas que era da cor do nada. Um portal – todo
beco abriga um portal. Imagens de criaturas extraordinárias superlotavam o muro
enganador. A horda de horrores vergava e subvertia as dimensões da superfície
que a continha. Mistura instável de feras hibridas e diversas, nenhuma delas
inteiramente reconhecível, ostentando cores cambiantes, berrantes e sombrias.
No centro impreciso daquele inferno multicolorido,
algumas vezes, a Polisbena de Grafites se manifestava desafiadora. Congregava
em si e empoderava aquele bando insano de monstros malformados. Só ficava
visível quando longamente observada. De repente se descolava da parede e
invadia a realidade. Quando olhada de frente, diretamente, no foco, a criatura
coletiva permanecia no limiar do entendimento e da compreensão, sem jamais ser
captada com clareza. Escapulia sempre, se ocultando na periferia do olhar,
feito uma ondulação mutante e persistente, um eterno ir e vir. Numa transição
permanente entre ser e não ser. Acumulação aterradora de todas as feras
mencionadas nos bestiários, desafiando e provocando a Razão. Mas isso apenas os
Meios poderiam enxergar.
Um medo frio e encrespado se irradiou da minha
coluna até a ponta dos dedos dos pés e das mãos. Resolvi voltar no dia
seguinte, com o sol a pino, para examinar de novo a criatura incognoscível.
******
Na plena luminosidade da manhã de verão nada mudou,
a Polisbena de Grafites reverberava envolta no halo cintilante e
multidimensional que emanava da parede rugosa. Era com certeza uma janela
intermúndios, um rasgo para o impensável e incompreensível.
Nas paredes em volta centenas de pervicazes gatos
Cheshire flutuantes apareciam e sumiam, sorridentes, abobalhados e
desinteressados. Eram a ultima defesa. Era aquela muralha sardônica de sorrisos
dúbios, de descrenças e dúvidas, que ainda mantinha inviolado o portal.
Senti que, do lado de lá, um inimigo amorfo e
ancestral desafiava a mim e o Consenso dos Meios, nos incitando a dar um passo
a frente e cruzar para além da segurança e conforto da realidade rotineira e
conhecida. No calor de 35 graus um terror áspero distendia meus nervos e
revolvia minhas entranhas, percorrendo os órgãos um a um. Olhei para o céu
azul, depois para o resto do beco. As pessoas passavam cabisbaixas, silenciosas
e apressadas, desviando os olhos e evitando a pintura.
Minha reação era de espanto, assombro e
repulsa racial. O antigo pavor dos Meios havia se confirmado afinal. Os
disformes Jaguardartes estavam invadindo este continuum. Haviam chegado ao
Bixiga. Faltava descobrir quem eram seus asseclas, quem grafitava os muros,
quem ajudava a Polisbena de Grafites a devassar os oblívios portais, abrindo caminho para os soturnos
mundos de Alice.
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