segunda-feira, 15 de abril de 2013

O CICLOPE DE OLHO VERDE


O Ciclope do poema ainda não é aquele que prendeu Ulisses e seus soldados na caverna; que aceitou o vinho oferecido, se embebedou e adormeceu; que teve seu único olho vazado durante o sono por um lança incandescente; e acabou a vida vagando trôpego pela ilha.

Também não é o amante apaixonado e rejeitado por Galateia, a ninfa pastora de golfinhos; que, por ciúmes,  matou Ácis, o rival, esmagando-o com uma pedra.

Na mitologia grega existe uma legião de ciclopes, de várias origens, todos seres infelizes, toscos e telúricos. Polifemo, o inimigo de Ulisses, é filho de Poseidon e da ninfa Toosa, portanto um semideus, sabedor dos desígnios e planos do Olimpo. A tragédia é que conhece seu próprio destino por antecipação, por isso sofre mais.

A primeira publicação dessa poesia foi antes da Internet, na pré história da informação, em 1977; quando o mimeógrafo e o xerox eram as tecnologias disponíveis para autores novos. Neste tempo publicava meus poemas numa revista xerocada chamada AMARELOS BOLORES, na época achávamos lindo o nome.

O Cíclope de Olho Verde foi publicado numa edição mimeografada de 20 exemplares (infelizmente não me sobrou nenhum), também distribui centenas de copias ao longo dos anos. Quem lê diz que é uma 'joinha bem lapidada', cheia de facetas e brilhos inesperados. Gosto muito desse poema, das reflexões do Ciclope acerca de seu desastre anunciado. Venho polindo o texto faz uns 30 anos.


O CICLOPE DE OLHO VERDE 

 

Douglas Bock

Abril/74

Dezembro/80

 

 O Ciclope de sobre a pedra olha o mar,

seu olho glauco passeia o mar calmo

prendendo efêmeros e aquosos reflexos,

um sol senil de tranças em fogo

e face rubra navega o horizonte,

mas barco nenhum navega em retorno.

 

Porém a ordem dos deuses será cumprida,

no sopro do vento virá o barco legendário

trazendo o lutador e a luta.

 

Espera e chegada são um mesmo fio

que as Parcas incansáveis tecem

urdindo a adivinhada trama.


A rombuda lança vazará o único olho

na ferrenha luta de resultado conhecido.

O verso da vida esta escandido:

será derrotado, de olho vazado, na luta brutal.

 

Os deuses sonolentos têm obrigações:

prover o destino de obstáculos e vitórias.

O heroísmo tem que ser comprovado,

e o Ciclope, de redondo olho, é o obstáculo

posto para maior glória do herói.

 

Do ápice da raça estéril ele espera

que a abrasadora lança lhe vaze o olho singular.

Nunca o ressonhado milagre da confraternização,

porque a rivalidade é imemorial e infinita,

intemporal como os sonhos e as lendas.

Jamais ambos poderão juntos admirar

redimidos a rubra rosa redundante

que repete a beleza das pétalas.

 

Aprisionado na ilha mora o Ciclope,

pronto para o combate e para a derrota,

sem qualquer outra alternativa.


*   *   *

Os deuses, de antecipada memória, sabem

que a semente da ruína no Ciclope germina,

que provará o agridoce fruto pisoteado,

que o sono ébrio cerrará seu olho único,

que despertará com fogo, dor... e alívio;

que Ninguém verá sua última lágrima, Ninguém.

Os deuses, de antecipada memória, sabem...

 

Para o Ciclope viver e lutar é igual proceder.

A luta é um sol imóvel, inevitável, e inclemente.

A vida uma sombra alongada, absurda e atroz

que figura sempre  a derrota.

 

A espera, a chegada e o combate se confundem,

o antes e o depois são conceitos vazios

porque derrota anula e oblitera o tempo.

O arbítrio do Ciclope é só prolongar a peleja.

 

Pudesse o barco navegar à deriva...

Pudesse a batalha durar a eternidade...

 

Derrota e plenitude entretecidas

na justa e irrecusável mortalha.

O Ciclope prostrado aceita o destino

como o rio previsível acode ao mar.

 

Pudesse a lança ser desviada...

Pudesse preservar o olho glauco...


*   *   *

O Ciclope é um ser de centralizado olho

que mora na ilha, cria cabras e espera.

Não tem futuro, nem glória, nem engenho,

só o circular olho glauco o distingue.

Mas a rude lança vazará o olho oval

e sua escassa identidade será roubada.


Quando o olho for vazado

 não haverá mais Ciclope.


Restará um monstro hediondo, arrasado e inútil,

vagando trôpego e tateante pela ilha esquiva,

com uma central cicatriz onde antes houve um olho,

de todos conhecidos, que conheceu a augurada derrota.

 

 Se quando o barco legendário surgisse

o Ciclope se acovardasse, fugisse,

rejeitasse o férreo destino imposto,

não seria necessário haver Ciclope

porque somente para a luta ele existe.

 

Não. Não há alternativa possível.

Não adiantará vencer o herói,

não poderá partir no barco

(Ninguém pode vencer as sereias),   

nunca alcançará um porto seguro,

nenhuma esposa o espera ansiosa,

nenhuma epopéia o reclama triunfante.

 

 Vencer. Partir. Reinventar o Ciclope.

Plasmar com seu atos um novo futuro.

Refazer a História violentamente;

nela, à força, intercalar seu destino.

Arranjar os fatos num novo desfecho,

apagar o prometido triunfo do herói.

 

Isso apenas os deuses podem fazer,

e um Ciclope é só um ser de centralizado olho,

um monstro sem glória, para a derrota criado.

 

Aos devassados vaticínios dos deuses,

o arruinado Ciclope se curva resignado.

Pressente o legendário barco no horizonte

Invoca o engenhoso inimigo desconhecido

e aguarda a ígnea lança, rombuda e implacável.

 

O Ciclope de sobre a pedra olha o mar,

de seu olho glauco não corre nenhuma lágrima.

 

4 comentários:

  1. Caro Douglas,

    Li o poema de seu Ciclope. Fiquei impressionado com a maturidade do texto, sua profundidade humana e poética, em se tratando de um poema da juventude. Ainda que tenha sido lapidado, partiu como uma obra prima, uma "odisseia" à procura da Ítaca maravilhosa dos nossos sonhos, esse mar de águas verdes para onde acorre a visão de Polifemo. Esta vítima trágica resume o destino humano, entre a partida e o retorno, entre lobos em pele de sereias, que cantam uma canção de engano. Mas optamos pelo engano lúcido, o da poesia. E assim vamos nós, como Polifemo-Sísifo, que se vinga dos deuses vivendo, porque o seu "arbítrio... é prolongar a peleja", por terras de Ninguém.

    Obrigado pela partilha dessas palavras aladas, sonhos de Homero, do mundo e suas.

    22/12/2014 12:37

    Alison Ramos

    "Alison Ramos é um jovem e talentoso amigo, autor do excelente livro de contos 'MeMoiras', de Fortaleza, Doutorando em Filosofia na Universidade do Ceará. Via Facebock mandou esses ineteressantes comentários, que - me pareceu - expandem os horizontes de eventos do poema: 'O Ciclope de Olho Verde'. Por isso resolvi reproduzí-los aqui."

    Douglas Bock

    ResponderExcluir
  2. Que beleza! Amei essa obra prima. A peleja da vida, o mar de memórias e a deusa Parca que nos rodeia e nos rouba de cena na hora final da batalha, se é que existe hora final. Assim é a nossa vida, tal e qual. Nós todos somos esse Ciclope, que ao longo das lutas temos os olhos vazados, impedidos de vermos tantas coisas, e mesmo escutando as cantigas do mar já não choramos mais por nada, pois acabamos por compreender nosso destino e aceitar a vida como ela deve ser. Assim, como cada um entende do seu jeito, humanizei essa criatura. Coloquei-me no lugar desse ser mitológico, e como romântica que sou, vi-o pelos meus olhos, amei-o por sua grandeza. Parabéns, poeta, a vida acaba por vencer a dor, sempre, ainda que nossos olhos estejam vazados e secos. A nossa sina há de ser cumprida.
    Um abraço e meu aplauso.

    Lígia Beltrão

    ResponderExcluir
  3. Lígia Beltrão, obrigado por reescrever meus versos. Porque um poema nunca esta pronto, antes da publicação o poeta o revê infinitas vezes, depois cada leitor o reescreve durante a leitura. As metáforas mudam de sentido e ganham novas conotações. É excitante ver nosso poema comentado por outro poeta.

    ResponderExcluir
  4. Transcrito do Facebook
    Paula Malfitanni É que a lágrima correria do olho que ele não tem.

    ResponderExcluir