
O
CICLOPE DE OLHO VERDE
Douglas Bock
Abril/74
Dezembro/80
O Ciclope de sobre a pedra olha o mar,
seu olho
glauco passeia o mar calmo
prendendo
efêmeros e aquosos reflexos,
um sol
senil de tranças em fogo
e face
rubra navega o horizonte,
mas
barco nenhum navega em retorno.
Porém a
ordem dos deuses será cumprida,
no sopro
do vento virá o barco legendário
trazendo
o lutador e a luta.
Espera e
chegada são um mesmo fio
que as
Parcas incansáveis tecem
urdindo
a adivinhada trama.
A
rombuda lança vazará o único olho
na
ferrenha luta de resultado conhecido.
O verso
da vida esta escandido:
será
derrotado, de olho vazado, na luta brutal.
Os deuses sonolentos têm obrigações:
prover o
destino de obstáculos e vitórias.
O
heroísmo tem que ser comprovado,
e o
Ciclope, de redondo olho, é o obstáculo
posto
para maior glória do herói.
Do ápice
da raça estéril ele espera
que a
abrasadora lança lhe vaze o olho singular.
Nunca o
ressonhado milagre da confraternização,
porque a
rivalidade é imemorial e infinita,
intemporal
como os sonhos e as lendas.
Jamais
ambos poderão juntos admirar
redimidos
a rubra rosa redundante
que
repete a beleza das pétalas.
Aprisionado
na ilha mora o Ciclope,
pronto
para o combate e para a derrota,
sem
qualquer outra alternativa.
* * *
Os deuses, de antecipada memória, sabem
que a
semente da ruína no Ciclope germina,
que
provará o agridoce fruto pisoteado,
que o
sono ébrio cerrará seu olho único,
que
despertará com fogo, dor... e alívio;
que
Ninguém verá sua última lágrima, Ninguém.
Os
deuses, de antecipada memória, sabem...
A luta é
um sol imóvel, inevitável, e inclemente.
A vida
uma sombra alongada, absurda e atroz
que
figura sempre a derrota.
A
espera, a chegada e o combate se confundem,
o antes
e o depois são conceitos vazios
porque
derrota anula e oblitera o tempo.
O
arbítrio do Ciclope é só prolongar a peleja.
Pudesse
o barco navegar à deriva...
Pudesse
a batalha durar a eternidade...
Derrota
e plenitude entretecidas
na justa
e irrecusável mortalha.
O
Ciclope prostrado aceita o destino
como o
rio previsível acode ao mar.
Pudesse
a lança ser desviada...
Pudesse
preservar o olho glauco...
* * *
O Ciclope é um ser de centralizado olho
que mora
na ilha, cria cabras e espera.
Não tem
futuro, nem glória, nem engenho,
só o
circular olho glauco o distingue.
Mas a
rude lança vazará o olho oval
e sua
escassa identidade será roubada.
Quando o olho for vazado
não haverá mais Ciclope.
Restará um monstro hediondo, arrasado e inútil,
vagando
trôpego e tateante pela ilha esquiva,
com uma
central cicatriz onde antes houve um olho,
de todos
conhecidos, que conheceu a augurada derrota.
Se quando o barco legendário surgisse
o Ciclope se acovardasse, fugisse,
rejeitasse
o férreo destino imposto,
não
seria necessário haver Ciclope
porque
somente para a luta ele existe.
Não. Não
há alternativa possível.
Não
adiantará vencer o herói,
não
poderá partir no barco
(Ninguém
pode vencer as sereias),
nunca
alcançará um porto seguro,
nenhuma
esposa o espera ansiosa,
nenhuma
epopéia o reclama triunfante.
Vencer. Partir. Reinventar o Ciclope.
Plasmar com seu atos um novo futuro.
Refazer
a História violentamente;
nela, à
força, intercalar seu destino.
Arranjar
os fatos num novo desfecho,
apagar o
prometido triunfo do herói.
Isso
apenas os deuses podem fazer,
e um
Ciclope é só um ser de centralizado olho,
um
monstro sem glória, para a derrota criado.
Aos
devassados vaticínios dos deuses,
o
arruinado Ciclope se curva resignado.
Pressente
o legendário barco no horizonte
Invoca o
engenhoso inimigo desconhecido
e
aguarda a ígnea lança, rombuda e implacável.
O
Ciclope de sobre a pedra olha o mar,
de seu
olho glauco não corre nenhuma lágrima.
Caro Douglas,
ResponderExcluirLi o poema de seu Ciclope. Fiquei impressionado com a maturidade do texto, sua profundidade humana e poética, em se tratando de um poema da juventude. Ainda que tenha sido lapidado, partiu como uma obra prima, uma "odisseia" à procura da Ítaca maravilhosa dos nossos sonhos, esse mar de águas verdes para onde acorre a visão de Polifemo. Esta vítima trágica resume o destino humano, entre a partida e o retorno, entre lobos em pele de sereias, que cantam uma canção de engano. Mas optamos pelo engano lúcido, o da poesia. E assim vamos nós, como Polifemo-Sísifo, que se vinga dos deuses vivendo, porque o seu "arbítrio... é prolongar a peleja", por terras de Ninguém.
Obrigado pela partilha dessas palavras aladas, sonhos de Homero, do mundo e suas.
22/12/2014 12:37
Alison Ramos
"Alison Ramos é um jovem e talentoso amigo, autor do excelente livro de contos 'MeMoiras', de Fortaleza, Doutorando em Filosofia na Universidade do Ceará. Via Facebock mandou esses ineteressantes comentários, que - me pareceu - expandem os horizontes de eventos do poema: 'O Ciclope de Olho Verde'. Por isso resolvi reproduzí-los aqui."
Douglas Bock
Que beleza! Amei essa obra prima. A peleja da vida, o mar de memórias e a deusa Parca que nos rodeia e nos rouba de cena na hora final da batalha, se é que existe hora final. Assim é a nossa vida, tal e qual. Nós todos somos esse Ciclope, que ao longo das lutas temos os olhos vazados, impedidos de vermos tantas coisas, e mesmo escutando as cantigas do mar já não choramos mais por nada, pois acabamos por compreender nosso destino e aceitar a vida como ela deve ser. Assim, como cada um entende do seu jeito, humanizei essa criatura. Coloquei-me no lugar desse ser mitológico, e como romântica que sou, vi-o pelos meus olhos, amei-o por sua grandeza. Parabéns, poeta, a vida acaba por vencer a dor, sempre, ainda que nossos olhos estejam vazados e secos. A nossa sina há de ser cumprida.
ResponderExcluirUm abraço e meu aplauso.
Lígia Beltrão
Lígia Beltrão, obrigado por reescrever meus versos. Porque um poema nunca esta pronto, antes da publicação o poeta o revê infinitas vezes, depois cada leitor o reescreve durante a leitura. As metáforas mudam de sentido e ganham novas conotações. É excitante ver nosso poema comentado por outro poeta.
ResponderExcluirTranscrito do Facebook
ResponderExcluirPaula Malfitanni É que a lágrima correria do olho que ele não tem.