sexta-feira, 25 de abril de 2014

RAUL SEIXAS – Dois Relatos Amarelos


Sempre que penso, ouço ou converso sobre Raul Seixas sou transportado para uma dimensão amarela. Cor ambígua, na raiz latina significa ‘amargo’, porém também remete ao Sol, fonte de toda energia. Passei a ser abduzido por este estado amarelo-alterado depois que conversei com dois amigos (que não se conheciam) mas que que estiveram com o ‘maluco beleza’ nos últimos dias de sua vida, e – espontaneamente – enfatizaram a presença do amarelo na figura do nosso gênio de vida curta.

Acho melhor relatar detalhadamente os encontros para entender a estranheza da ‘amarelidade’ do Raul. Desvio que me deixou intrigado e espantado, porém não muito surpreso, porque sempre achei que o Maluco Beleza tinha aura amarelo-dourada, como o sábio da capa do LP 'Há Dez Mil Anos Atrás'.

*** MARCO ANTONIO DE SOUSA – empresário e fotógrafo - (Loja Free Note / Rua Teodoro Sampaio, 785). Em 1989 atuava na indústria fonográfica, na Warner/Chappell que administrava os direitos autorais das músicas do disco 'A Panela do Diabo'. O último LP do Raul (em parceria com Marcelo Nova), lançado dois dias antes de sua morte. Para formalizar os procedimentos de lançamento precisava colher as assinaturas do artista nos contratos de edição, por isso foi até o flat do artista, na Rua Frei Caneca, perto da Avenida Paulista. Levava um calhamaço de quase 30 páginas que deveriam ser rubricadas e assinadas.

Foi atendido por uma governanta (Dalva, que, mais tarde, encontrou o corpo do roqueiro) e conduzido até um homem magro sentado numa mesa estranhamente envolto uma aura amarelo resplandecente. A cor era intensa, parecia irradiar dos dedos do fumante inveterado, impregnados de amarelo-nicotina, e se alastrar pelo corpo inteiro. Até os dentes, o branco dos olhos e própria sombra estavam saturados por tons amarelos-dourados. Um dourado ouro-velho, patinado.

Lentamente, exausto, Raul, como se estivesse esperando abrir as portas amarelas do paraíso, rubricou e assinou os documentos. No entanto, se recusou a tocar no cheque, desviou o rosto do pedaço de papel estendido e disse: “Dinheiro não! Entregue essa coisa para Dalva.” Agradeceu o mensageiro e se dirigiu para um sofá de vinil amarelo no meio da sala, se inclinou com dificuldades e deitou encolhido, exaurido e sem forças.

*** VERA HELENA AMATTI – jornalista, professora e escritora – era uma jovem repórter de trânsito da Rádio Excelsior. No dia 21 de agosto de 1989 estava baseada no topo do Edifício Cásper Líbero (Gazeta), seu turno começava às 14 horas. Logo que assumiu o posto uma amiga telefonou e passou uma dica: “Ouvi um boato que Raul Seixas morreu. Como está perto do flat dele não quer conferir?” Vera, com a impetuosidade da juventude, largou tudo e correu, a pé, para Rua Frei Caneca, distante nove quarteirões. Na entrada do prédio havia algumas pessoas paradas, alheadas e desarvoradas. Quase sem ar, mas audaciosa como os bons repórteres, perguntou, sem se identificar: “Onde está Raul Seixas?” Alguém, desatento, respondeu: “Lá em cima.”

A porta do apartamento estava aberta, Vera entrou. Estendido num sofá de vinil amarelo, no meio da sala, repousava um homem, também, exageradamente, amarelo. Uma áurea, pálida e mortiça, amarelo perolada, emanava do corpo. Era Raul Seixas, definitiva e indubitavelmente morto.

“O coração que se recusa a bater no próximo minuto / A anestesia mal aplicada / A vida mal vivida” Canto para minha morte

Impulsiva e excitada, Vera desceu correndo e entrou num bar ao lado do cursinho Etapa. Comprou um monte de fichas telefônicas – ainda não existia celular – e ligou para a sede da Rádio Excelsior. Entrou no ar imediatamente para comunicar o falecimento do Rei do Rock brasileiro. Repetiu a notícia incontáveis vezes, para o Brasil e para o mundo. Foi temerária, antecipou uma informação que somente seria oficializada no dia seguinte

Amarelo é uma cor curiosa, de iluminuras, iluminações. As pessoas mais inquietas – que enxergam a trama oculta da Realidade - acabam vendo o mundo com um desvio para o amarelo. Por exemplo Van Gogh, que abusava do amarelo na sua paleta de cores, durante algum tempo viveu em Arles e fundou uma colônia de artistas para desvendar a 'amarelidade do amarelo'.

Duas telas disputam o privilégio de ser o último quadro pintado por Van Gogh: Os campos (The fields) e Campo de Trigo com Corvos (Wheat field with crows). Não importa o resultado, porque ambos evidenciam que os momentos finais de Van Gogh estavam saturados de amarelo.

Depois de ter ouvido os dois relatos não acho nada de extraordinário nisso, porque parece que nas proximidades da morte – geniais – o pintor holandês e o roqueiro baiano percebiam o mundo pelo espectro amarelo. Enxergavam e mostravam coisas invisíveis para os mortais de outra coloração. Ouro de Tolo.

Contudo sempre é bom repetir – amarelo é a cor das melhores mentes.

Boa viagem no 'Yellow Submarine', Raul.