quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

XADREZ A TRÊS


Este trio de poemas brinca com o conceito de truelo, que, na Teoria dos Jogos (viram o filme ‘Uma Mente Brilhante’?), é o nome dado às confrontações com mais de um adversário ao mesmo tempo.

As decisões dentro de  um truelo são ultra complexas, porque qualquer ataque contra ‘b’, deixa o atacante ('a') vulnerável a ‘c’, 'd' e demais envolvidos. Por isso são imprescindíveis as alianças e os acordos; também, nenhum arranjo é estável e permanente. Toda Paz é provisória. 

A analogia vale também para ‘pensamentos’, ‘sentimentos’ e ‘instintos’ que se enfrentam num truelo perpétuo. Um 'xadrez a três' dentro de nós.

CÓLERA ENCARNADA

SABOR DE PENSAMENTO

TAUROMAQUIA

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

PREDINHO TESTEMUNHA


A foto panorâmica foi tirada da torre da Igreja da Consolação, no início dos anos 50, quando a área do triângulo formado pelas Avenidas Ipiranga, Consolação e São Luís era objeto de desejo de todas as construtoras.

Já estavam prontos os grandes edifícios do lado ímpar da Av. São Luís, a Biblioteca Mário de Andrade e o Novo Hotel Jaraguá (antigo Estadão).

Contudo, o verdadeiro graal era o miolo do triângulo que permanecia ainda praticamente vazio. Continuava ativa a saudosa e deliciosa Vila Normandia, obra do arquiteto Júlio de Abreu Junior nos terrenos do Conde Sílvio Álvares Penteado.

Os planos e projetos para ocupação do paraíso imobiliário atiçavam o fogo ardente das negociações. Os edifícios Itália, Copan e o alto paredão de prédios residenciais do lado par da São Luís (o Louvre por exemplo) logo brotariam para verticalizar e transfigurar o triângulo.

Imprescíndivel, entretanto, é registrar uma pequena e interessante construção, com exíguos térreo e seis andares, que já se emperiquitava premonitória no vasto terreno desocupado. Humildemente não se declarava nem prédio nem edifício, no letreiro de metal apenas ‘CRUZEIRO’, no número 355 da Rua Araújo.

O predinho ainda existe e resiste até os dias de hoje, engolido e despercebido entre as imensas construções que o cercaram. Se não fosse a antiga fotografia panorâmica, nunca teria prestado atenção nesta testemunha do passado que viu tudo acontecer.

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segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

BENEDITOS CALIXTOS – CAPELA DO SANTÍSSIMO / CONSOLAÇÃO


Dentro da Igreja Nossa Senhora da Consolação – na skatista Praça Roosevelt - do lado direito do altar, fica a 'Capela do Santíssimo Sacramento'. A porta, sempre aberta, está debaixo do quadro 'Santa Ceia' de Oscar Pereira da Silva. Pequena, tamanho de uma sala média, com vitrais voltados para um bosque.

No fim da tarde a capela, quando recebe o sol de revés, apesar de miúda, vira um pequeno espaço transcendental, uma “catedral de silêncios eleitos” de Fernando Pessoa. Os vidros rutilam e as cores dos quadros acordam e se incendeiam esfuziantes; as horas atordoadas se enroscam nos ponteiros e, encantadas, passam devagar pelo relógio.

É um espaço de espantos porque está luxuosamente adornado por todos os seis magníficos painéis de Benedito Calixto que a Catedral possui. O cara é um dos maiores pintores paulistas pré-modernistas. De todos, o que melhor explorou as motivações sacras.

As seis telas são de 1918, do apogeu artístico de Benedito Calixto, quando ainda não era o padroeiro da feirinha de sábado na praça com seu nome. Tanto que, em 1919, Monteiro Lobato – fã de Benedito, mas caolho, porque não gostava das 'mistificações' de Anita Malfatti - afirmou que era o mestre paulista que mais vendia.

Devia ser verdade, porque várias cidades do interior paulista, importantes no ciclo do café, como Brotas, Bocaina, São Carlos e diversas outras, se orgulham de ter obras e afrescos pintados por ele nas suas igrejas e fazendas. Santos tem até um interessante museu com seu nome.

Benedito Calixto, como todo pintor que alcançou sucesso, revisitava versões de seus quadros quase sem alterações. Em consequência um par de quadros da Consolação, ‘A Caminho de Emaús’ e ‘A Ceia de Emaús’, têm diversas versões espalhadas pelo estado. As 4 outras obras retratam santos mais exclusivos: São Tarcísio, São Tomás, Santa Clara e Santo Antônio de Pádua.

Algumas fontes mencionam um São Boaventura, contudo, parece que estão equivocadas, não encontrei o santo na capela, nem registros nas documentações acadêmicas das obras do autor.

A Igreja da Consolação – e especialmente a Capela do Santíssimo – é um excelente lugar para PAULISTAR, fácil de visitar e propício para meditar. Ótimo para quem quiser recosturar a alma no corpo, têm silêncios acariciantes, belas obras de arte e fica perto da Estação República do Metro. Na volta dá para passar no Café Floresta no Copan, um dos três melhores de S. Paulo.

AS SEIS PINTURAS

segunda-feira, 24 de novembro de 2014

SAUDADES DOS LIVROS LIDOS - Clarice Lispector


Muita vez, correndo os olhos pelas estantes das livrarias – ou dos amigos, passamos por territórios literários que já exploramos com prazer em longas leituras: Machado de Assis, Fernando Pessoa, Drummond, Dostoiévski, Hesse, Proust, Borges... Galáxias de saudades coruscantes.

Estes olhares pervagantes são perigosos, porque atiçam e avivam um tipo muito peculiar de emoção: as 'saudades dos livros lidos'.

Infelizmente, mesmo os melhores livros, a gente só lê uma vez. Depois só é possível revisitar, relembrar ou matar saudades. Ler de verdade – com excitação, pressa, curiosidade e fôlego preso – só a primeira vez.

É impossível descrever a vertigem de sentimentos que as primeiras leituras dos bons livros desencadeiam nas almas dos leitores sensíveis. Uma experiência singular que cada pessoa vivencia apenas uma vez. Feito as grandes paixões, são vincos e dobras que marcam nossas almas para sempre.

Não existe escapatória, podemos reler infinitas vezes; revisitar os trechos preferidos; estudar as melhores passagens e capítulos; decorar pedaços inteiros; escrever teses de mestrado... Porém, nunca recuperamos o impacto do primeiro contato.

Como não se deslumbrar e se entregar às dubiedades de Capitu, de Dom Casmurro? Não se maravilhar com as peregrinações de Harry Haller, o ‘outsider’ d’O Lobo da Estepe? Não se arrepiar com a descida aos instáveis interiores de Raskólnikov, no Crime e Castigo? Reviver as incertezas de Riobaldo, nos Grandes Sertões: Veredas? Sentir uma incômoda solidariedade com Gollum no Senhor de Aneis?

O mundo dos livros têm infinitas veredas, cada leitor cria seu próprio itinerário. Contudo o primeiro contato com um livro é sempre mágico: inesquecível e, infelizmente, irrecuperável.

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Quando temos sorte, algum dia, por casualidade, alguém nos fala, ou lemos num artigo, ou esbarramos numa livraria com um novo e desconhecido autor (Elias Canetti, Kawabata Yasunari, Osman Lins?). Parece que descobrimos uma galáxia ainda não catalogada. Somos presenteados com uma nova, longa e excitante exploração. Dependendo da velocidade de leitura são meses ou anos de novos prazeres inesperados. Um dia, de repente, o novo fica velho, cartografado no nosso mapa de delícias, e vira 'saudades dos livros lidos'.

Por isso – mesmo sendo uma resolução insana  – é recomendável guardar algum autor, comprovadamente bom, sem nunca lê-lo. Preservar, resguardada na estante, esta chance do deleite inigualável da primeira leitura.

Deve-se abster, inclusive, de folhear os livros do autor reservado para não cair na tentação de começar a ler. Porque não dá para saber se algum dia não seremos abduzidos para uma ilha deserta, com direito apenas a uma escolha?

É como pagar um seguro ou fazer um investimento no futuro.

Eu, por exemplo, apesar da curiosidade, apenas olho fotografias de Clarice Lispector (minha reserva pessoal), posso até ler sua biografia e suas citações. Entretanto, nunca  fraquejo e me atrevo a abrir algum dos seus livros. Porque, tenho certeza absoluta, ela é tão boa que, inexoravelmente, depressa, vai se converter em uma nova 'saudade dos livros lidos'.

sexta-feira, 7 de novembro de 2014

As 32 Colunas da Sala São Paulo


Como nos livros de Dan (Código da Vinci) Brown S.Paulo é cheia de tramas e referências (numéricas e simbológicas) cruzadas e correlações camufladas entrelaçando a História, Arquitetura e Artes em geral.

 Por exemplo, quem frequenta a Sala São Paulo, se contar as elegantes colunas compósitas dentro do Auditório, constatará que totalizam 32. Não por acaso o ano da Revolução Constitucionalista, 9 de julho de 1932. Talvez a data de maior significado para as tradições cívicas paulistas e paulistanas.

 O engenheiro-arquiteto Christiano Stockler das Neves era um paulista tradicional e apaixonado. Formando em 1911 pela Universidade de Pensilvânia, construiu talvez o primeiro aranha-céu da cidade, o Edifício Sampaio Moreira, endereço da centenária Casa Godinho. Ativo, apresentou projetos para as Estações do Norte (Brás) e D. Pedro (Rio); organizou o Faculdade de Arquitetura do Mackenzie; e foi prefeito de S. Paulo por cinco meses. Um currículo de competência e dedicação à cidade.

A histórico da construção da Estação Sorocabana é descontínuo e turbulento. O espaço onde estão as 32 colunas – origem do Auditório da Sala São Paulo - anteriormente era um jardim interno de teto aberto. O projeto é 1925, os trabalhos começaram um ano depois, em 26, antes da revolução. Nos anos de 28/29, por causa das trepidações da Economia, o projeto foi postergado e simplificado, o que levou Christiano Stockler das Neves a abandonar o empreendimento, e inclusive processar a Sorocabana exigindo preservação da planta contratada. Perdeu.

 Na retomada foram priorizadas e construídas antes as plataformas de embarque. O edifício completo e acabado, porém modificado, e com o nome de Estação Júlio Prestes – um paulista eleito presidente, mas impedido de assumir - foi inaugurado apenas em 15 de outubro de 1938

Quem sabe Dan Brown não seja só um maníaco. Quando lembramos das grandes construções e monumentos de S. Paulo antigo, como o Edifício 'Ouro para o Bem de São Paulo', construído com as sobras do dinheiro da campanha ‘Doe Ouro para o Bem de São Paulo’; ou do Obelisco aos Heróis de 32, no Parque Ibirapuera; cheios de referências numéricas de efemérides e dados cívicos paulistas, as dúvidas e mistérios aumentam:

As 32 colunas são somente coincidência?


DIMARCO, Ana Regina e ZEIN, Ruth Verde  Sala São Paulo de Concertos - Revitalização da Estação Júlia Prestes: O Projeto Arquitetônico / Arquiteto Nelson Dupré - São Paulo / 2001 - Editora Alter Market   

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Parque Savoia - Por Trás dos Portões

O Parque Savoia, na Rua na Vitorino Carmilo, 458, Campos Elísios (a mesma onde nasceu Amácio Mazzaropi), sempre me encantou pela arquitetura romântica e elegante. Sobretudo me fascinavam seus jardins internos, secretos e interditados. Todos fomos criança, sabemos que invadir jardins proibidos é uma compulsão irresistível.

Já escrevi algumas vezes sobre esta intrigante construção no Blog Paulistando (http://www.paulistando.com.br/2013/03/parque-savoia-lugares-de-outra-sao-paulo.html). Especulava sobre seus mistérios e inventava moradores fictícios, poderia ser o esconderijo paulista para um remake do Sherlock Holmes. Nas minhas caminhadas, as vezes desviava para passar por lá, só para apreciar a fachada, atiçando a vontade de cruzar as grades de ferro e adentrar nos jardins e alamedas da ‘vila’ italiana.

No começo deste ano (2014), descobri que o proprietário, Sr. Salvatore Iungano, participava de alguns grupos do Facebook de que fazia parte, trocamos algumas mensagens e revelei meu desejo. Fui convidado a visitar o parque por dentro. Aceitei agradecido, em junho de 2014 atravessei os portões do paraíso escondido. Entre outras heranças tenho uma avó romana, fiquei siderado com a riqueza de Cultura e História ítalo-paulista guardada na vila.   

Antes de começar a falar das maravilhas do Parque Savoia gostaria de parabenizar o Sr. Salvatore Iungano que – ‘apesar’ das erráticas leis de tombamento e preservação – mantem este monumento arquitetônico praticamente sozinho, com muito esforço e dedicação pessoal. É um pedaço de passado embalsamado e protegido com carinho.

segunda-feira, 13 de outubro de 2014

Na Fila Com Marlene Dietrich


Fui ao CCBB - Centro Cultural Banco do Brasil ver a Retrospectiva da MARLENE – a diva alemã do cinema antigo. Planejava passar uma tarde curtindo a atriz indecifrável e desaparecida das TVs, mesmo nos canais a cabo regiamente pagos.

Entrei na fila e comecei a ler o programa da mostra. Na capa a foto da homenageada, obviamente em preto e branco – as cores dos estados da alma – com o inseparável cigarro, que, infinitas vezes, nas velhas películas envolvia seu rosto em volutas de deslumbramentos e mistérios.

Umas 20 pessoas esperavam na minha frente, então me entretive com o livreto do evento. Acho que, enquanto estava lendo, fui transportado por um desses desvãos extratemporais onde o assombro habita, porque quando ergui os olhos das páginas a fila inteira havia se metamorfoseado.

Contei cinco ‘Woody Allen’s, todos tímidos e desajeitados, tentando entender os desacertos do mundo. Entre eles, um herege que ousou trocar os famosos óculos de aros pretos por uma finíssima armação de metal dourado. Devia ser expulso do evento.

Os ‘Alfred Hitchcock’s eram três, com suas reconhecíveis caras de enfado absoluto e barrigas proeminentes. Pareciam saber que algo terrível se anunciava e estavam ali para conferir, quem sabe encenar e dirigir a tragédia iminente.

Me espantou o número de ‘Martin Scorsese’s – sete, com seus óculos escondendo as sobrancelhas de Groucho Marx. Na verdade acho que alguns eram o ácido comediante ressuscitado.

Estavam lá o Ingmar Bergman de bermuda; o Pier Paolo Pasolini de camisa do Corinthians; o Stanley Kubrick e o Roman Polanski chupando sorvetes, e, entre os dois, uma Lolita lambendo um pirulito. Mais uma imensidão de emanações de célebres atores e diretores, muitos não consegui reconhecer.

Uma constelação de estrelas: meia dúzia de 'Marlene's; várias ‘Greta Garbo’s de olhos grandes e silenciosos; algumas 'Louise Brook's melindrosas de provocantes cabelos curtos, além de muitas ‘Marilym Monroe’s e ‘Rita Hayworth’s de vestidos colantes de todas as cores, todas já sem luvas.

Intrigado, e um pouco preocupado, voltei para o livro tentando  através da leitura  escapar daquele estado de consciência alterada. De repente me ocorreu uma questão urgente:

- E eu? Pelos olhos dos outros, quem era?

Olhei de novo para a fila e flagrei dois Fernandos Meirelles sorridentes olhando insistentemente para mim. Como estava de chapéu, pretensiosamente, torci para ter me transformado no John Huston ou no Clintão.

sexta-feira, 10 de outubro de 2014

Prefácio - Sobre a Transcencência do Silêncio

Intrigante e desafiador o título do livro, uma anunciação clara do maior inimigo dos poetas estes cavaleiros andantes do espírito humano. Porque, Sobre a Transcendência do Silêncio, remete a mais emblemática conclusão da Filosofia do século XX, quase repete a afirmação final do Tractatus Logico-Philosophicus, de Ludwig Wittgenstein: “O que não se pode falar, deve-se calar.” Entretanto está recomendação é inaceitável para a Poesia verdadeira, porque o poeta pode, e deve, falar de tudo.

A imagem subjacente que acompanha a leitura dos poemas de Nathan Souza (NS) é de um cordão mágico, vibrátil, vital e sem-fim, que se desenrola, impetuosamente, tentando enlaçar e amarrar o sentido das coisas. Como um caudaloso rio de planície; como uma trajetória de navegação de um viajante audacioso; como o fio de Ariadne que avança com destemor para dentro do labirinto.

Rio, mapa de navegação e fio de Ariadne são três metáforas intercambiáveis, porém complementares; em cada uma delas é igualmente importante, tanto a tessitura da rota-cordão, quando a geografia por onde ele se desenrola.

Como um rio sinuoso a Poesia de NS inventa curvas elegantes e inesperadas para visitar, conhecer e dar notícia de cada habitante escondido na floresta. Como a torrente, que carrega o sal da terra, seus versos absolvem todos os pecados, compartilham todas as maravilhas e realizam em todos os milagres.

Sua Poesia também é um barco a vela que navega, impelido pelo vento da curiosidade, pela cartografia das ‘pequenas ilhas afetivas de fantasia’, que C. G. Jung mapeou no inconsciente coletivo da humanidade, onde residem as fadas, os príncipes encantados, os monstros, e onde moram as soluções de todos os mistérios do coração e da alma.

Sobretudo, a Poesia de NS é como um fio de Ariadne que o poeta vai fiando à medida que avança. Cada nó se transforma num poema, num sinal. Um cordão de tessitura cambiante, às vezes de algodão de fibra longa, para garantir coesão da inspiração e da lógica; às vezes de fios de ouro por causa do brilho e da riqueza das figuras de linguagem; às vezes de seda colorida e fantasiosa, repleto de referências imediatas e imemoriais.

Segundo Ezra Pound, no livro ABC da Literatura, “...literatura [Poesia] é simplesmente linguagem carregada de significado até o máximo grau possível...” E existem três formas de sobrecarregar a linguagem de significado: a fanopéia – poesia de imagens; a melopéia – poesia de sons; e a logopéia – poesia de ideias.

A fibra escolhida para o cordão de Nathan parece ser a logopéia, a mesma trama rija selecionada por Drummond, Jorge de Lima, João Cabral e Ricardo Reis (o heterônimo exilado de Pessoa).

Não são as rimas ricas, nem as sonoridades sibilantes; nem as imagens profusas que assaltam NS, o que lhe assedia são ideias e ‘sentimentos pensados’. O Poeta não é arrastado pela irresistível atração da exaltação da vida; nem compelido pelas reminiscências e lembranças; o que o impulsiona é a exploração dos sentimentos, camuflados no prosaico, no dia a dia, e mimetizados no óbvio.

A busca dos significados da existência, a tentativa de decifração dos mistérios da vida, pulula na Poesia de NS, existem incontáveis exemplos.

No poema Espera, ele procura compreender a faculdade do entendimento, aquela que cuida das ideias e dos sentimentos racionalizados:

“(o todo inconsciente
que a tudo
exige compreensão
já que o entendimento
nunca foi um dom
exclusivo
da razão).”

Em Resquício aparece novamente a procura do ferramental para racionalização do discurso:

“da língua de amolar
minha palavra
ancestral.”

São acertadas estas práticas de interrogação permanente sobre a gênese e os fundamentos do significado das palavras e sentimentos, porque ficar em silêncio não é uma solução conveniente para o praticante de Poesia - a mais vã e sutil das artes - que têm como matéria e desafio a palavra, a elaboração de um discurso significativo.

Por isso é imprescindível meditar Sobre a Transcendência do Silêncio e prestar atenção no que NS tem a dizer acerca deste assunto.

Nathan Souza, Sobre a Transcendência do Silêncio, Belém-PA, Editora LiteraCidade, 2014(www.literacidade.com.br)

sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Veneza, Livros, Sebos, Bibliotecas, E-Books, Bits...


Entrei num sebo em Veneza, perto da Igreja de Santa Maria Formosa – uma região de antiquários. A loja era estranha e intrigante, meio navegante, meio delirante, como os contos de Borges. Uma sequência de 20 – ou infinitas – salas e cubículos mal iluminados, com janelas e portas altas e baixas, pequenas e grandes que se abriam para um canal estreito e ensombrado, apesar do sol brilhante.

Os livros – muitos milhares – estavam dispostos em pilhas úmidas que brotavam diretamente do chão, de ladrilhos multi centenários ou calçamentos rudes e ásperos. Formavam paredes, evocavam labirintos, provocavam assombros. Uma pequena parte, sobretudo os Livros de Arte, estavam viajando, expostos em velhas gondolas, barcos, banheiras, carinhos de jardinagem e outras esquisitices espalhadas pelos corredores ou dependuradas nas paredes, como estantes improvisadas.

Havia indicações de seções e setores – de um humor arrevesado – sinalizando cantos escuros e quartos abarrotados: ‘livros para garotos que não conhecem o medo’; ‘policiais americanos de autores suspeitos’; ‘receitas para donnas audazes’, ‘cinema dos tempos bons’. Mais que letreiros, lembravam propostas indecentes, chamadas do flautista de Hamelim, ou propagandas de Literatura Weird.

Arrisquei ‘cinema dos tempos bons’. Era tentador, centenas de coloridos e expressivos cartazes de todos os velhos filmes italianos clássicos: Rocco e i suoi fratelli’, ‘Vaghe stelle dell'orsa’, Il gatto a nove code’, ‘Anonimo Veneziano’ e muitos outros que nunca tinha visto ou ouvido falar. Me arrependi de não ter trazido todos.

De repente, caminhando por aquele sebo anfíbio veneziano, por aquela infinidade de colunas de alfarrábios e estantes replicadas, constatei apreensivo a imensidade de livros se desfazendo, quase se liquefazendo e escorrendo para o canal. Como se fossem letrados musgos esverdeados de Lovecraft. Comecei a pensar na compulsão de escrever; e, um pouco, na veleidade de publicar.

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Dois dias depois fui visitar a Biblioteca Marciana (Biblioteca Nazionale Marciana), talvez, a mais antiga biblioteca pública do mundo moderno, localizada num dos Palácios da Praça São Marcos, à beira do Grande Canal.

Num dos folhetos, contendo as explicações museológicas das salas, li uma história instigante. Um sábio chegou do oriente carregando seus 40 rolos de manuscritos, uma extravagância para a época. Ao desembarcar doou todo o acervo para Veneza. Em retribuição foi acolhido como cidadão pela Sereníssima Republica. Esta contribuição compõe um dos núcleos originais da vasta coleção de manuscritos e livros antigos que a instituição guarda.

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Sai com uma questão enroscada nos meus neurônios: quantos e quais livros são essenciais na cultura mundial?

Uma pergunta difícil de responder, porque escrever é como fazer uma contribuição pessoal para a memória coletiva, para a 'Biblioteca Marciana' da humanidade. E a memória humana é cumulativa  nunca seletiva. Guarda tudo, não classifica, nem por valor, nem por importância. Preserva, com o mesmo zelo, o essencial e o irrelevante.  Manifestações culturais são incomparáveis.

Entretanto, ainda não dá para saber direito o que vai acontecer com a enxurrada de publicações que desaguam na (e inundam a) Internet, como 'l'acqua alta'. Serão preservadas como as obras em papel? Terão a mesma longevidade?

Ou somente legiões de robôs imortais 'susancalvinianos' se debruçarão, por alguns nanossegundos, para ler as páginas em código binário das veleidades e divagações humanas?

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

7 CORES INVENTADAS

7 Cores Inventadas
Ciclo de sete poemas, de formato livre, revisitando e
homenageando sete pintores, três holandeses e quatro
italianos, que utilizam algumas cores de maneira peculiar, 
inusitada ou estranha, como se as tivessem apartado
do espectro solar e tomado posse delas.

Nas pinturas de Johannes Vermeer (1632/1675), as mulheres liam cartas, muitas. E se uma delas fosse do marido em Recife – na Invasão Holandesa, da primeira sinagoga fundada nas Américas – morto de saudades, tentando traduzir este sentimento para a amada.

Os mestres de Jacopo Robusti Tintoretto (1519/1594) eram Michelangelo
e Tiepolo, porém a pressa, o movimento e o desvio para o vermelho
de suas pinturas não vêm de nenhum dos dois.

Para Giambattista Tiepolo (1696/1770) mundo e céu,
deuses, homens e seres mitológicos eram azuis
e conviviam diariamente.


Rembrandt van Rijn (1606/1669) era um dos grandes mestres, pintou muitos autorretratos, os mais fiéis possíveis, lhe aprazia mostrar para o Tempo
– esse vampiro íntimo e insaciável – sua atroz voracidade. Apreciava também
captar com precisão a luz, que sempre existe, mesmo que seja de viés.

Ticiano Vecellio (1473(?)/1576) nas suas incontáveis e policromadas
veladuras de cores inimagináveis, inventou tons de rosados que ninguém
sabia que existiam. Habitadas por mulheres lindas, sublimes, idealizadas e inalcançáveis. Ilustrações do melhor que a espécie humana pode produzir

Vincent Van Gogh (1853/1890) compartilha com Poe e Lovecraft a mesma esquisitice e inquietude. Tentam nos convencer que vivemos numa realidade paralela e descolada do real. Tudo que vemos, tocamos ou percebemos é falso, frágil e quebradiço, se desmanchando no ar.

Vittore Carpaccio (1465/1526), transubstanciado, está presente nas mais sofisticadas mesas do mundo. Quando encontrado nos museus e galerias de arte, sempre dá um nó
– e ás vezes fome – no entendimento do apreciador.















terça-feira, 9 de setembro de 2014

Estações Júlio Prestes e Luz, Futuro Travado


O belo prédio da EMESP - Escola de Música do Estado de São Paulo - Tom Jobim (Largo Gen. Osório, 147), defronte a Sala São Paulo da OSESP.

Um centro de excelência na formação de músicos eruditos. Uma espécie de raiz e tronco que garantem a floração das grandes orquestras e conjuntos instrumentais e vocais brasileiros.

Às vezes, caminhando pelo eixo da Pinacoteca, Museu da Língua Portuguesa na Estação da Luz, Museu Estação Pinacoteca, Sala São Paulo e o prédio acima, imagino como ficaria esta região com as linhas de trem subterrâneas, como acontece nas grandes capitais do mundo.

Mudaria completamente o foco e o futuro desta área desgradada, deslocaria o eixo imobiliário de S. Paulo. Seria um novo Ibirapuera, do lado norte da cidade. Um espaço diferente, contudo, porque repleto de edifícios e casas antigas e passiveis de restauração e preservação.

Não faltam ideias, existem bons projetos de recuperação; não falta dinheiro ou financiamentos. Nossa carência é de estadistas cultos e patriotas, capazes de pensar além dos partidos. Infelizmente, hoje, parcos e raros. Vivemos uma era de políticos imediatistas, mensaleiros e gananciosos.

sexta-feira, 29 de agosto de 2014

CENAS DO CINEMA PAULISTA


A muralha de prédios da Praça Roosevelt – nos anos 50/60 – era o limite da S.Paulo que virara megalópole. Separava o agitado e boêmio Centro Novo dos distantes e tranquilos bairros residenciais: Higienópolis, Cerqueira Cesar e Jardins. A Paulista ficava longe, ainda era apenas uma avenida refinada, cheia de casarões.

Dois filmes emblemáticos do Cinema Paulista – que registrava este momento de mudança efervescente e de acelerada industrialização – terminam exatamente aqui: os clássicos São Paulo S/A (de Luís Sérgio Person) e Noite Vazia (de Walter Hugo Khouri).

No primeiro – São Paulo S/A – Walmor Chagas, um existencialista desencaixado, rouba um carro na praça-estacionamento e dirige sem parar fugindo da S. Paulo (que ficava grande demais) e procurando o sentido da vida.

No segundo – Noite Vazia – Mário Benvenutti e Gabriele Tinti, playboys entediados, depois de uma noite de transas, confrontações e revelações, no começo da manhã, deixam duas garotas de programa (Norma Bengell e Odete Lara) nesta praça deserta, surreal e semiabandonada. Depois voltam para suas vidas de burgueses, pacatas e bem comportadas.

Esta praça sempre foi uma esquisita zona de transição dentro de S.Paulo, porém no fim das tardes um Sol tépido, ofuscante e intrometido invade os apartamentos da muralha. Sempre foi, e continua sendo, um endereço procurado por artistas e intelectuais, por gente interessante e interessada.

Num desses edifícios – o mais baixo, a esquerda – funciona a Escola de Teatro da Prefeitura, e os térreos dos outros prédios acolhem os palcos experimentais e questionadores de cena do teatro paulista: Sátiros, Parlapatões e outros.

Todo mundo que morou ou estudou em S.Paulo frequentou a região, os bares, os teatros e, seguramente, o velho e saudoso Cine Bijou, para assistir filmes cabeça. cabeça.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Motivos para Amar S.Paulo

Sentado na Praça Roosevelt e olhando para as luminárias espaciais, depois a torre meio gótica da Igreja da Consolação; junto com o futurista e efêmero Hotel Hilton – hoje gabinetes de desembargadores - vemos, entre ambos, parte do curvo edifício que acolheu o antigo Bar Redondo, é impossível controlar o atropelo das lembranças.

Sobretudo porque em S.Paulo as estações do ano são como crianças travessas, não seguem regras e não cumprem calendários. Primaveras saltam de dentro de invernos e outonos se escondem nos verões. Às vezes todas quatro brincam de roda no mesmo dia.

Por isso a sutil elegância das meninas paulistas confunde os migrantes e atordoa os turistas caetanos. É coisa mais pessoal, bandeirante. Engana a Moda, não depende das roupas, reside mais perto da pele. As paulistaninhas sorriem imprevisíveis, como as estações. São invernais, outonais ou primaveris, sem obedecer a nenhum critério. Certeza? Apenas que o riso-verão – que esquenta e excita - está reservado somente para os namorados.

As transições das estações em S. Paulo são inesperadas, mágicas e misturadas. Ordem e sequência não são respeitadas. O tempo de recolhimento é cheio de quietude ou ousadias, o romantismo é tomado de entusiasmos e a regra abriga exceções. Em dúvida, meio tontas, as cores ficam mais carinhosas e cambiantes. Coquetes, as possibilidades brotam coloridas como agapantos desregulados e todo mundo sonha com coisas impossíveis ou inacreditáveis.

Nas caminhadas tanto podemos ver novas florações incandescentes, como afundar os pés em folhas caídas (talvez dos vasos das janelas), tudo na mesma rua.

Porque em S.Paulo, sempre existe mais de uma opção; sem contar com as surpresas.

terça-feira, 29 de julho de 2014

O Lado Ensolarado da Rua dos Ingleses


No lado ensolarado da Rua dos Ingleses – no topo dos Morro dos Ingleses  – no longo quarteirão entre o Teatro Ruth Escobar e a Rua dos Franceses, preservados e coloridos se exibem nos dias de sol.  Entre eles o Museu Memória do Bixiga e a Miguel Giannini Óculos, o famoso esteta ótico das celebridades e autoridades (ficção e política). Nos tempos  eleitoreiros, os comitês partidários aproveitam e também invadem a ladeira com comitês (ficção e política de novo).

Vale a pena caminhar e olhar para os dois lados da rua. Exceto pela estridência dos coloridos, impensáveis para os paulistanos antigos, que eram muito mais discretos e sóbrios, com um pouco de imaginação pode-se voltar no tempo uns 70 anos atrás, vivenciar uma cidade mais pedestre.

Na ótica do Miguel Giannini – impecavelmente preservada, inclusive as portas e janelas originais, de madeira de lei – existe um museu de óculos antigos com surpresas inesperadas. O Miguelzinho é o cara, além de preservar o prédio, faz um magnífico trabalho social para jovens carentes. Alguns deles  de paletó e gravata  frequentam estreias no Municipal para aprender a valorizar a arte.

Se, depois do passeio, acometer um impulso irreprimível para adquirir antiguidade  nos domingos  basta descer a bela e pouco cuidada escadaria para Rua Treze de Maio e visitar a Mercado de Pulgas da Praça Dom Orione. Antes de iniciar a descida da escada, aprecie a vista do Centro Velho, vale a pena.

Infelizmente nas foto – e isto é mal política e horrenda ficção – persiste a fiação suspensa. Serve como tarja preta de protesto contra a incompetência de nossos políticos municipais, estaduais, federais e muitos mais.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

BIXIGA E AS DOBRAS DO TEMPO

No Bixiga – que esnoba o pomposo nome de Bela Vista - acontecem coisas esquisitas, espantosas e inexplicáveis. Parece que nele o passado insiste, resiste e persiste. Se esconde e retorce para não morrer e ser enterrado.

Suas ruas antigas guardam com zelo e carinho as sementes de todas as 'paulistanices'. Adoniram e a miscigenação permanente dos migrantes e nativos. Os antiquários; a casa que acolheu as loucuras e insanidades de Dona Yayá. Além dos teatros antigos e resilientes.

O bairro que – dois séculos atrás (1819) - acolheu e abrigou Saint-Hilaire, o mais simpático e otimista dos cronistas estrangeiros que visitaram S. Paulo, deve ficar dentro de uma sutil dobra do Tempo. Dentro deste território mítico aconteceu a invenção do 'paulistano' típico. Um bolsão irreal costurado com agulhas mágicas e linhas esquisitas. Com limites indefinidos e geografia incerta.

É possível, por exemplo, fazer uma viagem no tempo na Avenida Brigadeiro Luis Antonio, número 1308 e encontrar dois sobradinhos vizinhos recém reformados



Parece que a onda de revivescência dos sobradinhos é cíclica, alguns meses atrás registrei a revitalização de um quarteirão inteiro da Rua Maria José, esquina com a Brigadeiro Luís Antônio. O post teve mais de 500 mil visualizações, ninguém acreditava, diziam que era montagem.



Por causa de seus ares – não cores – novecentistas, talvez na Rua dos Ingleses exista um portal para o passado. Porque as vezes os raios do Sol iluminam uma ladeira inteira, ideal para se ‘paulistar’. Lá perto do Teatro Ruth Escobar, atrás das cantinas da Rua Treze de Maio e no alto da escadaria da Praça Dom Orione, onde repousa um busto de Adoniram. Em torno do poeta, aos domingos, acontece um mercado das pulgas onde são comercializadas as escamas dos tempos idos.


Como tem fronteiras móveis o Bixiga ocupa um lugar privilegiado na geografia paulistana. No sentido norte-sul fica entre a Avenida Paulista e o Centro Velho. No sentido leste-oeste divide a Liberdade e Aclimação de Higienópolis e Cerqueira Cesar. Considerando o mapa e as facilidades de acesso, não existe melhor ponto para se morar, é perto de tudo, mas diferente de todos os outros lugares.

Andando pelo Bixiga esta sanha de restauração parece um pouco com um despertar do Realismo Fantástico, depois de cem anos de sonhos deslembrados.

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