quinta-feira, 22 de outubro de 2015

Deise, Dóris e Dalva

Quem primeiro viu Dalva parada e perdida na esquina foi Dóris. Olhou, virou a cabeça para ver melhor e latiu abobalhada. Alertada, Deise foi até a janela, sexto andar, e viu uma mulher, atarantada e assustada, olhando para cima e para todos os lados. O farol mudou duas vezes e a moça não saiu do lugar.

Os problemas de Deise naquele dia estavam na sua agenda superlotada de compromissos. Precisava fazer um monte de ligações, dar um jeito na casa, levar Dóris para passear e passar pelo consultório. Não havia conseguido desmarcar várias consultas. Ficar sem empregada era como nadar num tsumane prologado.

Uns 20 minutos depois Dóris voltou a latir assanhada e esganiçada. Deise, de novo, foi até a janela. A mulher continuava no mesmo lugar olhando as ruas e os prédios, aflita e desamparada.

“O que esta acontecendo com aquela coitada?”

sexta-feira, 16 de outubro de 2015

Carta de Ricardo Reis para Mário de Andrade


Rio de Janeiro, 10 de Dezembro 1935

Querido Mário de Andrade:

No começo de nossa amizade, em 1921, firmamos um ‘pacto pagão’. Combinamos que nossas conversas seriam sempre face a face, francas e livres. Sem segredos nem discussões religiosas, políticas ou morais. Penso que fui eu a propor o acordo porque tenho a cabeça panda de incoerências. Sobre Religião coleciono certezas absolutas, sobre Política (como monarquista ou sebastianista sem rei) não sei me explicar direito e ainda estou inventando uma moral para caber dentro dela.

Concordamos, acima de tudo, em não trocar correspondências. As cartas são como fotografias, tentam deter o rio de Heráclito. E as relações humanas são dinâmicas, repletas de nuances, até as lembranças são falazes e enganosas. Sempre é melhor conversar, viver o momento e falar da cor real de cada coisa. Sei que és um missivista compulsivo e que nossos encontros são esparsos, mas calculo que a decisão foi acertada.

Estou quebrando a regra acordada porque fui te procurar em S. Paulo e não encontrei. Sabes que, no Brasil, és meu mais próximo e confiável amigo. Era imperativo te falar sobre as estranhezas que aconteceram comigo duas semanas atrás.

Todas as tribulações começaram num espelho, no fundo de um corredor numa quinta no Cosme Velho.

terça-feira, 13 de outubro de 2015

ELIS REGINA, SEM MAIS NADA


A mais certa das certezas é que o publico do show Falso Brilhante de Elis Regina cresce continuamente. Sempre que pergunto para alguém se assistiu o show mítico, respondem: “Claro, eu estava lá.” Inclusive os mais jovens, que nasceram depois de 1977.

Bom, ‘claro, [eu também] estava lá’. E por duas vezes. Mas a historia curiosa aconteceu na primeira, em 1976.

Meu amigo Marcião era mitômano, embusteiro e imprevisível, mas, apesar de tudo, boa gente. Assistiu ao show quase na estreia e voltou com uma dica sigilosa e excitante. Das cocheiras, dizia, porque gostava de apostar em cavalos.

Era no Teatro Bandeirantes, Avenida Brigadeiro Luiz Antonio. Lá, de um conjunto de 12 ou 15 lugares,

sexta-feira, 9 de outubro de 2015

'Aura' e Aberração do BBB


Quem se detém defronte os quadros mais famosos da História da Pintura Ocidental, como Guernica de Picasso e As Meninas de Velasquez, sente e entende a 'aura', aquele perpétuo crepitar da inteligência e êxtase de que fala Walter Benjamin

As duas telas são largamente conhecidas e infinitamente reproduzidas (em livros e na Internet). Também é fácil encontrar todo tipo de fotos e ampliações de detalhes e peculiaridades publicadas. Contudo, nada disso se compara com o sentimento de deslumbramento, encantamento e reverência de estar diante dos originais.

Talvez pela fama, talvez pelo tamanho (Guernica 3,5 x 7,8 m e As Meninas 3,2 x 2,8 m), talvez pela fortuna crítica, mas, de uma forma ou doutra, a ‘aura’ da Arte – ou algo mais – a experiência de conhecer esses quadros célebres de perto é completamente diferente de ver cópias ou fotografias.

Guernica e As Meninas impressionam pela grandiosidade. Vêm-se coisas,