Durante anos – minha memória se recusa a dizer quantos – fui um
ativo praticante da Sincrética Arte de Rodar Pião. Sincrética porque acolhe
muitas seitas e inúmeras modalidades, talvez para cada bairro ou rua da cidade
exista uma variação.
Na vila em que morava o auge acontecia nos
fins de setembro, quando os ventos amainavam e levavam com eles a mania de
empinar pipas. De repente, parecendo uma compulsão ancestral, alguém aparecia com
um pião. Bastava isso para a febre contagiosa se alastrar. Naqueles tempos, de separação de gêneros, a arte da pionaria era coisa mais de menino.
Todos nós tínhamos uma caixa de sapato cheia de piões e
fieiras guardada e perdida em algum canto da casa, era hora de exumação e revivescência.
O número de piões que cada garoto possuía variava, dependia do ímpeto de adesão
à arte. Minha memória sugere, mas não garante, que eu possuía cerca de dez, e
várias fieiras (aquele cordão grosso necessário para rodar o pião).
No auge da temporada é um brinquedo irresistível,
obrigatório. Talvez porque tenha uma forma estranha, uma escultura de madeira,
bonita, cheia de veios misteriosos, com desenho dinâmico, cortada por sulcos
que prometem as delícias da velocidade. A ponta de aço faz dele uma arma
poderosa, capaz de tirar lascas e causar rachaduras eternas nas batalhas de
piões.
Os brinquedos, apesar de parecerem iguais, têm infinitas
diferenças, dependem do fabricante, do ano, do bairro... Todo pião, mesmo igual, é peculiar e único. Cada adepto escolhia sua versão preferida e a pintava e
decorada com incisões, desenhos e marcas pessoais do proprietário. Os piões de
estimação eram troféus valiosos quando capturados nas guerras piônicas.
A prática da Sincrética Arte de Rodar Pião cultivava duas
vertentes principais: exibição e guerra.
A exibição valorizava a habilidade de rodar o pião.
Velocidade, pontaria, duração, zunido e estilo. Fazer incisões no corpo do pião
para que zunisse ou pinta-lo para produzir efeitos cinéticos eram refinamentos
herméticos que somente os melhores dominavam plenamente.
Guerra. Diferentes jogos, disputas e enfrentamentos que contrapunham
os praticantes. Orgulho e realização dos mais velhos, desejo e inveja dos mais
novos.
No meu bairro a cela era o desafio mais popular. Dentro de
um círculo desenhado no chão ficavam os piões. Cada participante casava o seu
para entrar no jogo. Depois, em sequência, os piões eram lançados tentando
acertar as peças casadas com a maior contundência possível. Mirávamos dois
objetivos: provocar danos e tirar lascas dos piões alvos e conseguir retira-los
do círculo. Quando isso acorria a presa pertencia ao jogador.
O pião lançado – acertando ou não o alvo – deviria rodar e
sair das linhas da cela sozinho, senão um novo pião deveria ser casado. Assim
aconteciam as perdas dos piões favoritos. Doía, eu lembro.
Um dia qualquer, da mesma forma abrupta que havia começado a
temporada acabava. As caixas repletas de heróis e vítimas das guerras piônicas voltavam
a hibernar no mesmo esconderijo de onde saíram. Até o próximo ano porque sempre havia novas e inusitadas delícias da adolescência exigindo nossa completa atenção.
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