terça-feira, 23 de janeiro de 2018

NOSSA MEGALÓPOLE SECRETA


Fora da América Latina e do Circo da Formula 1 a cidade de S. Paulo não é nem um pouco conhecida. Quando perguntam ‘de onde você é?’ e respondemos ‘S. Paulo’, ficam parados, processando, esperando mais informações. Complementamos enfunados, ‘a maior cidade  sul-americana’, ‘a terceira maior cidade do mundo’. Continuam nos olhando, agora como estranhos habitantes da misteriosa Cidade de ‘Z’, que o Coronel Fawcett procurou a vida inteira e nunca encontrou.

Esta sensação, um espinho no orgulho paulistano, meio que virou do avesso quando visitei Israel, em agosto de 2013. Tony, nosso guia – um judeu britânico emigrado para Israel e casado com uma argentina – conhecia bem S. Paulo, lendas, geografias e histórias, porém nunca tinha visitado a cidade. Sua curiosidade sobre a paulicéia era insaciável, comparável à minha acerca da Terra Santa. Ficamos amigos, mudei para o banco da frente da van e conversávamos o tempo todo durante o longo as semanas do tur.

Tony era pintor nas horas vagas, tinha um atelier na Galileia, numa área conflagrada, de ocupação judia. Naqueles dias, por causa de sua curiosidade paulistana, estava entusiasmado com uma exposição de um modernista polonês. J.D.Kirszenbaum, emigrado para Israel que havia passado muitos anos em campos de concentração. Para espairecer,  entre 47 e 49, viajou por Marrocos e pelo Brasil, no trajeto pintou algumas telas sobre S. Paulo.

O artista foi membro da Escola de Paris – 1905 / 39 – um grupo de pintores, muitos estrangeiros, vários brasileiros, que se radicaram em Paris para exercitar suas artes. Deve ter vindo daí o interesse de Kirszenbaum pelo Brasil.

A mostra ‘J.-D. Kirszenbaum (1900-1954). A Geração Perdida’, acontecia na Universidade de Tel Aviv, Museu Beit Hatefoutsoth de Ramat-Aviv, entre 12 de julho a 30 outubro. Uma cidade cosmopolita, de belíssimas praias mediterrâneas e  apesar das discussões – capital de Israel. Tony deu uma enrolada nos passeios, fez uns desvios e liberou três horas para visitarmos a mostra. Agradeço até hoje, tanto por Kirszenbaum, quando pelo restante do acervo do Museu.

Tentei achar informações sobre as aventuras do artista polonês nas terras paulistanas, consegui quase nada. Além dos quadros pintados, no mês de julho de 48, Kirszenbaum participou de uma grandiosa mostra na Galeria Domus, junto com Volpi, Tarsila, Anita e uma longa lista, todo mundo capaz de manobrar um pincel com engenho ou arte.

A produção brasileira de Kirszenbaum é pequena, com poucas telas de temas. Sobre S. Paulo especificamente descobri apenas uma, que ilustra o texto.



quarta-feira, 17 de janeiro de 2018

Uma Utopia Paulistana – Av. 9 de Julho


Gosto de caminhar por S. Paulo ouvindo música, o perigo é que algumas rotas, de repente, nos transportam para outra cidade, ou para outro espaço-tempo.

O pessoal da ‘Psicogeografia’, da ‘Teoria da Deriva’ – um movimento artístico da década de 60, considerado a última vanguarda – acredita que cada pessoa (ou  grupo) habita uma urbe diferente, com um cenário geográfico mental peculiar e alterado. Para eles a S.Paulo que juramos conhecer é formada por incontáveis planos psico-afetivos superpostos, porém geograficamente coincidentes. Quando seguimos um mapa, cada um de nós faz um percurso mental diverso, com diferentes sensações e lembranças.

Por isso enquanto caminho por aí pratico Psicogeografia. Por exemplo, a Avenida Nove de Julho – o trecho Túnel / Praça da Bandeira – certamente foi concebida por outra civilização. Nos anos 40/60 um povo estranho, um pessoal legal, confiante, com um governo mais cidadão, numa utopia coletiva, se propôs construir uma avenida de fundo de vale enfatizando a elegância, Art Decô e Modernismo.


Provas disso são as luxuosas entradas/saídas do túnel que somadas aquele conjunto de três viadutos (Nove de Julho, Major Quedinho e Martinho Prado) com desenhos inusitados e cercados de vastas e numerosas escadarias torna este espaço único, esteticamente mágico e descolado do resto da cidade.


Certamente existem outros lugares semelhantes espalhados pela 'paulicéia - que se pretendia refinada - sonhando capturar uma magia fugidia. Alguns trechos próximos ao Parque Pedro II, o estádio do Pacaembu e o Mercadão. Todos rimam com esta estética, porém o epicentro é sem dúvida a Avenida Nove de Julho.


Flanando pela Nove de Julho é possível se transportar para um tempo comandando pela Art Decô em transição para o Modernismo. Os  belíssimos extremos do túnel; a Sinagoga da Avanhandava que virou museu; o arruinado e invadido Edifício INSS-Iapetc; a escadaria da Rua Caio Prado; o Prédio Maria Isabel no viaduto Major Quedinho (apontado numa tese da USP como exemplo da fusão Art Decô / Modernismo); o Edifício Viaduto e o Ladeira da Memória, entre outros que minha memória infiel agora me sonega.

Pena que a realidade não é romântica. Permitiu que os viadutos da ligação leste-oeste e o elevado da Praça 14 Bis invadissem este paraíso utópico.


Como é impossível reencontrar este paraíso perdido, escrevi um conto de História Alternativa em que o viés Art Decô/Modernista prevaleceu no tempo. Um conto chamado Hel 2 – A Ginoide Sampaulista’, publicado no meu último livro 'Contos do Tempo Emaranhado'.  Nele o Morro dos Ingleses é a região mais chic da cidade, cheia de galerias de arte, e a Avenida Nove de Julho o eixo refinado de S. Paulo.




terça-feira, 9 de janeiro de 2018

Capela Sistina - Ruas Tonelero/Cerro Corá


A Rua
Cerro Corá é especial e espetaculosa. Com toda certeza os apressados motoristas e pedestres que diariamente transitam por ela não se dão conta da curiosa peculiaridade daquela artéria na geografia de S.Paulo.

É especial porque seu trajeto segue exatamente a crista do espigão que separa o vale do Rio Pinheiros do vale do Rio Tiete. E é espetaculosa por causa das maravilhosas vistas que oferece dos dois lados dela, todas suas travessas são ladeiras íngremes.

Tem 2300 metros, começa na Vila Romana (fim da Rua Heitor Penteado) e vai até o Cemitério da Lapa.

Eu não sabia nada disso quando, entre 15 e 16 anos, carregado por uma mania maluca insistia em caminhar desde a Lapa até a Cerro Cora, seguindo a serpentina Rua Tonelero. Mesmo sob tortura minha memória jamais confessou o porquê dessa escolha espalhafatosa. Hoje – gentileza do Google - sei que percorria 1600 metros com 50 de elevação, mas nas minhas nebuladas lembranças a distância era mais longa e a subida muito mais inclinada.

No fim da década de 60 ainda era uma rua típica de bairro, a principal da Vila Ipojuca, de casas simples e com muitos portugueses. Talvez o nome exótico fosse o motivo de minha andança e principal chamariz. ‘Tonelero’, prometia uma fábrica de barris em pleno funcionamento que nunca encontrei. Havia também a bela Igreja de São João Batista, de tijolo a vista, que vigiava o percurso.

Atualmente a Rua Tonelero é famosa porque possui uma espécie de Capela Sistina tacanha, fica no fim dela o mais antigo ponto de ônibus da cidade, com o teto todo decorado.

Recordo dele, porém nunca foi a causa eficiente de minha peregrinação. Quando chegava à Cerro Corá descansava alguns minutos contemplando a amplitude dos horizontes sem fim e voltava, para, desconfio, a demanda do verdadeiro graal de minhas cruzadas.

Meus passeios acabavam sempre na Biblioteca Municipal da Lapa, na Rua Catão, onde minha missão era copiar – cada dia um pouco - os 7 mil versos dos ‘Quatro Quartetos’ de T.S. Eliot, porque não conseguia encontrar, nem tinha dinheiro para comprar o livro.

A Geografia emocional tem muito mais do que três, quatro ou cinco dimensões, porque precisa guardar todos os mundos paralelos que trazemos dentro de nós.



segunda-feira, 8 de janeiro de 2018

O Espanto e o Riso

Li alguma vez, acho que em Heidegger, que existem quatro maneiras de entender o mundo, Arte, Ciência, Filosofia e Religião. Todos os quatro caminhos são completos, equivalentes e autossuficientes. Não faz nenhum sentido criticar, refutar ou confirmar a verdade ou validade de qualquer um dos componentes do quarteto a partir de outro.

Destas quatro formas de conhecimento, a fundação mítica ou lendária da Filosofia é a mais sarcástica e zombeteira. Os dois maiores filósofos da antiguidade têm piadas sobre o assunto.

Platão no Diálogo
Teeteto, via Sócrates, sugere que a Filosofia de desvinculou do Saber Comum e se tornou um campo diferenciado de conhecimento desde o dia em que uma escrava trácia riu de Tales de Mileto – o primeiro filósofo – quando ele, distraído, olhando o céu caiu num poço. ‘De que adianta saber tanto se nem olha por onde anda?’, gozou.

Aristóteles, n’A Política’ conta que a Cidade de Mileto repreendeu Tales por ser muito pobre e viver alheado por causa de sua mania por Filosofia.

Apesar disso a Filosofia prosperou e conquistou seguidores, gerou bibliotecas babilônicas de obras, inclusive com ínfimas colaborações minhas, como esta dissertação que escrevi sobre o assunto na Faculdade de Filosofia.

Texto Completo: O Espanto e o Riso

sábado, 6 de janeiro de 2018

Filosofia e Política – Platão, Kant e Arendt

A contraposição entre a Filosofia e a Política é perpétua e indecidível, como a ‘luta do rochedo com o mar’. A crosta dura da Terra contém os oceanos, mas o eterno choque das ondas altera o desenho dos continentes, então a guerra não acontece em vão, porque os dois se modificam durante as intermináveis batalhas.

Por três vezes ao menos a confrontação se agudizou e a ‘Filosofia pura’ foi obrigada a pensar sua própria essência. Platão, com a condenação de Sócrates; Kant, as voltas com a Revolução Francesa e Hannah Arendt na Segunda Guerra Mundial.

No primeiro semestre de 1995 tive oportunidade de participar de um seminário na Faculdade de Filosofia nas USP com o Prof. Paulo Arantes examinando estes temas. Na oportunidade escrevi uma monografia sobre o assunto. Recentemente, relendo-a, entendi que a abordagem deste vasto tema continua interessante e pertinente, sobretudo atualmente em que vivemos guerras múltiplas envolvendo gêneros, raças e etnias. Em que ter uma mera opinião, ás vezes, não é natural e nem um direito.



Texto Completo: Filosofia e Política

quarta-feira, 3 de janeiro de 2018

A Sincrética Arte de Rodar Pião


Durante anos – minha memória se recusa a dizer quantos – fui um ativo praticante da Sincrética Arte de Rodar Pião. Sincrética porque acolhe muitas seitas e inúmeras modalidades, talvez para cada bairro ou rua da cidade exista uma variação.

Na vila em que morava o auge acontecia nos fins de setembro, quando os ventos amainavam e levavam com eles a mania de empinar pipas. De repente, parecendo uma compulsão ancestral, alguém aparecia com um pião. Bastava isso para a febre contagiosa se alastrar. Naqueles tempos, de separação de gêneros, a arte da pionaria era coisa mais de menino.


Todos nós tínhamos uma caixa de sapato cheia de piões e fieiras guardada e perdida em algum canto da casa, era hora de exumação e revivescência. O número de piões que cada garoto possuía variava, dependia do ímpeto de adesão à arte. Minha memória sugere, mas não garante, que eu possuía cerca de dez, e várias fieiras (aquele cordão grosso necessário para rodar o pião).




No auge da temporada é um brinquedo irresistível, obrigatório. Talvez porque tenha uma forma estranha, uma escultura de madeira, bonita, cheia de veios misteriosos, com desenho dinâmico, cortada por sulcos que prometem as delícias da velocidade. A ponta de aço faz dele uma arma poderosa, capaz de tirar lascas e causar rachaduras eternas nas batalhas de piões.

Os brinquedos, apesar de parecerem iguais, têm infinitas diferenças, dependem do fabricante, do ano, do bairro... Todo pião, mesmo igual, é peculiar e único. Cada adepto escolhia sua versão preferida e a pintava e decorada com incisões, desenhos e marcas pessoais do proprietário. Os piões de estimação eram troféus valiosos quando capturados nas guerras piônicas.




A prática da Sincrética Arte de Rodar Pião cultivava duas vertentes principais: exibição e guerra.

A exibição valorizava a habilidade de rodar o pião. Velocidade, pontaria, duração, zunido e estilo. Fazer incisões no corpo do pião para que zunisse ou pinta-lo para produzir efeitos cinéticos eram refinamentos herméticos que somente os melhores dominavam plenamente.

Guerra. Diferentes jogos, disputas e enfrentamentos que contrapunham os praticantes. Orgulho e realização dos mais velhos, desejo e inveja dos mais novos.

No meu bairro a cela era o desafio mais popular. Dentro de um círculo desenhado no chão ficavam os piões. Cada participante casava o seu para entrar no jogo. Depois, em sequência, os piões eram lançados tentando acertar as peças casadas com a maior contundência possível. Mirávamos dois objetivos: provocar danos e tirar lascas dos piões alvos e conseguir retira-los do círculo. Quando isso acorria a presa pertencia ao jogador.
O pião lançado – acertando ou não o alvo – deviria rodar e sair das linhas da cela sozinho, senão um novo pião deveria ser casado. Assim aconteciam as perdas dos piões favoritos. Doía, eu lembro.

Um dia qualquer, da mesma forma abrupta que havia começado a temporada acabava. As caixas repletas de heróis e vítimas das guerras piônicas voltavam a hibernar no mesmo esconderijo de onde saíram. Até o próximo ano porque sempre havia novas e inusitadas delícias da adolescência exigindo nossa completa atenção.



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