quinta-feira, 24 de novembro de 2016

PIRATEANDO 2001 – Uma Odisseia Nerd


A primeira vez que assistimos 2001 foi logo depois da estreia em S. Paulo, no Cine Comodoro, no infindável ano de 68. Éramos um grupo pré nerds, porque, como este termo bacana não tinha circulação ampla, o pessoal ainda nos chamava de CDFs ou babacas mesmo.

Quando acabou a sessão ficamos iguais aquele osso girando no espaço, encalacrados na maior elipse de tempo da História do Cinema Mundial, sem entender nada, perdidos no vácuo interplanetário e epistemológico, incapazes de completar a transição para acoplamento na estação espacial.

Naquele tempo era possível, por isso permanecemos sentados e pasmos no mesmo lugar esperando a nova sessão do enigma recomeçar. Congelada na cabeça, estava a última imagem da tela, um feto querendo voltar para o cálido conforto do ventre materno. Abobados mergulhamos na próxima exibição.

De nada adiantou ver de novo, as dúvidas se multiplicavam exponencialmente.

quinta-feira, 27 de outubro de 2016

HOTEL ESPLANADA – Sala de Visita da Paulícéia Desvairada


Em 1890 S. Paulo possuía apenas 64.934 habitantes. O que movimentava a vila era o agito acadêmico em torno da Faculdade de Direito. Ante disso servia apenas de paragem para imensas tropas de burros em direção ao Porto de Santos que desfilavam pela Rua Direita.

Escassos 32 anos depois – na Semana de Arte Moderna - chegou a quase 600 mil. A urbe que Mário de Andrade chamou de Paulicéia Desvairada havia se multiplicado por dez nesse intervalo a capital dos paulistas se consolidou como maior entroncamento ferroviário do país.

 As acanhadas capelas e igrejas coloniais foram derrubadas, no lugar delas ergueu-se um magnifico conjunto de templos católicos que, ainda hoje, enfeitam a paisagem da cidade. O Teatro Municipal eclodiu suntuoso do outro lado do outrora sinistro brejo do Anhangabaú que, drenado, foi convertido num parque urbano sofisticado, cercado de palacetes e decorado com estátuas. Edifícios começavam a crescer por perto e bairros chiques brotavam em torno do Centro.

domingo, 28 de agosto de 2016

OS LIVROS QUE NOS PROCURAM


Houve um tempo que no Beco do Pinto, um lugar magicado, antigo e discreto – aquele do lado da Casa da Marquesa de Santos – se realizava uma Feira de Livros Usados e Novos. Era às quintas feiras, pequena, de poucas bancas e quase ignorada. De vez em quando almoçava no Piero (o antigo, no N. 98) e entrava para ver as ofertas. 

Parecia genial acontecer uma feira de livros exatamente naquela ruela seiscentista. Um dia encontrei uma oferta extraordinária numa das barracas:


O LIVRO DOS CANTARES – SHE KENG
Tradução Portuguesa – Joaquim A. Guerra, S.J.
Jesuítas Portugueses – Macau / 1979


Um livro massudo, 7,5 centímetros de altura, 1254 folhas.  Simples, elegante, sóbrio, porém muito bem planejado editorialmente. Páginas espelhadas: no lado esquerdo duas colunas, uma em chinês cursivo, alfabeto latino, outra em ideogramas; do lado direito a tradução cuidada e contida. Índices e indicações fartas, completas e pródigas. O único exagero – quase um pecado perdoado de luxúria – era a sobrecapa: belíssima, de delicada gravura silvestre chinesa.


terça-feira, 9 de agosto de 2016

A Casa e o Caso de Alfredo Volpi


Nesta casa padrão, comum e camuflada – Rua Gama Cerqueira, 154 / Cambuci - Alfredo Volpi morou, quase a vida toda. Para alguns um dos maiores pintores brasileiros. Durante muitos anos foi seu atelier, de lá saíram milhares de obras primas (entre 3 a 5 mil). Hoje imensamente valorizadas. Entretanto nenhuma placa homenageia um dos mais ilustres, importantes e fies moradores do bairro.

Muitos críticos, prêmios e estudos têm destacado e consagrado o ítalo-paulistano como o mais criativo e revolucionário pintor nacional. Na Bienal de 1953/54, aquela que exibiu Guernica por meses (um raríssimo privilégio mundial) e mudou a geografia da Arte no Brasil, a indicação de melhor artista foi dividida entre Volpi e Di Cavalcanti.

Existe uma história neste ‘empate’. Na contagem inicial a votação apontou 8 a 1 para Di Cavalcante, Contudo e entretanto o solitário voto contrário era de Herbert Read – a sumidade internacional especialmente convidada. Então a eleição (previamente combinada, conforme especula Décio Pignatari), teve que ser reformada para um empate. Os 'modernistas' nunca engoliram direito esta nova matemática.

Curioso e previsível o percurso de Volpi. Começou como pintor de parede e decorador das mansões paulistas. Em 1912 cometeu suas primeiras telas; em 1940 integrou o Grupo Santa Helena; só em 1953/54, quando premiado pela 2ª Bienal, virou figura nacional.

No princípio era um paisagista naïf, pintou marinhas, casarios, fachadas e barcos. No meio disso eclodiram as bandeirinhas, que viraram sua marca registrada. Através delas tornou-se um mestre colorista e um refinado abstrato e parônimo.

Coincidência intrigante, as bandeirinhas são contemporâneas da Copa do Mundo, Bossa Nova e Cinema Novo. Nosso apogeu estético e cultural mundial. O milagre que permitiu ao Brasil ousar de um jeito diferente e inesperado, inventando fórmulas inusitadas, de resolver as eternas e inextrincáveis equações da Arte e do Esporte.

Contudo o ‘ingênuo’ Volpi foi muito mais além na ousadia, surfando na onda da guerra fria inventou a sofisticada e engajada série ‘Ogivas’, que dialoga com a possibilidade do colapso atômico, o perigo do Armagedom. Ou seja, pensou no mesmo horizonte de eventos dos outros grandes movimentos artísticos mundiais da época.

Uma exposição acontecida em Londres em junho/julho 2016 – no viés de novas reavaliações – questionou se Volpi seria mesmo ‘naÏf’. Interessantes tempos, talvez a fama do pintor cresça ainda mais no futuro, numa rota alterada e amplificada. Deixando para trás as chaves e avaliações da Semana de 22.


Publicação relacionada:

7 MESTRES BRASILEIROS - ALFREDO VOLPI

quarta-feira, 27 de julho de 2016

OSCAR NIEMEYER PASSOU POR AQUI


Oscar Niemeyer passou por S. Paulo muitas vezes, deixou seus sinuosos rastros espalhados por diversos pontos da cidade. Alguns como autor, outros como  colaborador.

Alguns belos conjuntos arquitetônicos exibem seus traços sestrosos: Ibirapuera – que o povo visita, frequenta e convive; Memorial da América Latina – perpetuamente deserto, feito cenários dos filmes de Michelangelo Antonioni.

Ao menos, por três vezes trabalhou no Centro Novo, participou dos projetos ou construiu edifícios de apartamentos, que, até hoje – entre retas e curvas, manhãs ensolaradas e tardes turvas – preservam e se beneficiam de suas ideias e paradigmas.

   Edifício Montreal – esquina das Avenidas Ipiranga e Cásper Líbero.

   Edifício Eiffel – Praça da República com Rua Marquês de Itú.

   Edifício Copan – Av. Ipiranga (perto da Igreja da Consolação)

Colaborou também, não se sabe direito quanto, na construção de dois ou três outros edifícios na cidade.

Infelizmente não deixou nada grande na Avenida Paulista. Talvez por isso, quando olhamos para Conjunto Nacional sentimos falta de curvas e fantasia.

quarta-feira, 29 de junho de 2016

Coluna Testemunha do Colégio Sion


Passo sempre por lá nas minhas caminhadas, toda vez me encanta a coluna-testemunha no longo muro do Colégio Nossa Senhora de Sion, no último quarteirão da Avenida Higienópolis, que vai da Rua Aracaju até a Rua Rio de Janeiro.

São ao todo 28 colunas, 27 delas absolutamente iguais, cobertas por reboco e pintadas de amarelo. Uma delas, porém – a sexta da esquerda, ou a vigésima terceira da direta – é de tijolos aparentes, num arranjo artístico. Logo, diferente de todas as outras.

A explicação mais óbvia é que se trata de um registro testemunho de uma antiga versão do muro. Preservada para ilustração das pretéritas reedificações ou expansões havidas.

Mas será apenas isso? Para leitores de Dan (Código Da Vinci) Brown, como eu, o prosaico é sempre suspeito. Quem dera fosse o indício, pista de um mistério intricado, uma daquelas e lendas semiverdadeiras que envolvem os fundamentos da história mítica da cidade.

A coluna singular é um belo exemplo de alvenaria antiga, tijolos assentados com engenho e arte, sugerindo ideias, inventando formas. Uma arte infelizmente em processo de esquecimento, como a serralheria, a marcenaria fina e outras.

Alguém arrisca um palpite? Uma tese cabalística?

Os números (se contei certo) são 28 colunas. Nesta ordem, sentido Pacaembu: 5 / 1(a coluna suspeita) / 22.

Algum segredo dorme debaixo dela?

Sempre que posso adiro à lenda.














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Agradecimento.

Gostaria muitíssimo de compartilhar a foto postada por Martin Jayo na minha timeline do Facebook. Um antigo cartão postal mostrando o muro do Colégio Sion de tijolos aparentes. Comprovando assim  que a coluna isolada é mesmo um monumento testemunho do estilo da versão pretérita da construção.

"Martin Jayo Parece ser mesmo um testemunho de versões anteriores do muro."  



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Novo Agradecimento.

A Arnaldo Bruno que apontou as semelhanças entre o antiga coluna do Colégio Sion e os muros que ainda hoje cercam a Santa Casa de Misericórdia, também em Higienópolis.


[...]








quarta-feira, 15 de junho de 2016

Os Clássicos – Borges Pessoa Machado

Jorge Luis Borges, num pequeno artigo, ‘Sobre los Clásicos’, o último do livro ‘Otras Inquisiciones’, afirma que cada país ou cultura elege uma obra de referência para representar aquela nação ou povo. Então passa a lê-la como se fosse uma criação supranatural, uma revelação. Acreditando que cada frase, cada palavra tem um significado especial, capaz de dizer muito mais do que seu contexto ou seu registro no dicionário.

Também
 sugere que um livro se torna um clássico não pelas suas qualidades literárias intrínsecas, mas pela reverência com que é lido e cultuado por um determinado povo.

Numa série de conversas radiofônicas em 1984 (Borges em Diálogos / Rocco) pondera que o livro escolhido acaba enformando o espírito da nação. Divaga que o clássico adotado pelos argentinos para inspirá-los foi ‘Martin Fierro’, de Hernández, um poema gauchesco que conta a historia de “um desertor, um malvado, um assassino sentimental”. Para o país, talvez, uma melhor opção teria sido adotar ‘Facundo: Civilización i Barbárie’, de Sarmiento, que valoriza a ideal de civilidade e democracia.

É produtivo pensar pela chave proposta por Borges, correlacionando o clássico nacional e o espírito do país.

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Tomando Portugal, o grande clássico lusitano sempre foi 'Os Lusíadas’, a saga de um povo orgulhoso, exíguo, navegante e conquistador. Porém, parece que está sendo substituído pelos versos de Fernando Pessoa. Um poeta plural, de vozes diversas e variados pontos de vista. Um autor cosmopolita, com uma obra inacabada, não publicada em vida, que ainda hoje esta sendo descoberta e consolidada.

Quem sabe Portugal esteja migrando para Fernando Pessoa porque se vê como uma nação em reconstrução.

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O clássico que o Brasil consagrou como guia foi Machado de Assis, mais precisamente seus cinco grandes romances, os últimos que escreveu. E entre eles, especialmente, ’Dom Casmurro’.

Estranha seleção, porque o autor é um mulato que emula e defende os valores da alta classe média. Estoico, resignado, fatalista, irônico e desapaixonado. Que rejeita terminantemente a paternidade, para evitar deixar as mazelas humanas como herança para seus descendentes. Seu principal livro fala de uma relação naufragada por causa de um mistério ocluso, nebuloso e indecidido.

No livro ‘Ao Vencedor as Batatas’ de Roberto Schartz, um especialista em Machado de Assis, um dos principais capítulos chama-se: ‘Ideias Fora de Lugar’. Um título inquietante, cheio de augúrios e premonições.

Tem aparecido novos candidatos ao posto de clássico nacional: ‘Macunaíma’  o herói sem nenhum caráter, ‘Grande Sertão: Veredas’  a narrativa de um amor ambíguo, ou, quem sabe, Drummond?

É interessante pensar aonde cada um desses livros levaria o Brasil.


Outras postagens relacionadas:

Perfumes Do Machado

Carta de Ricardo Reis para Mário de Andrade

sexta-feira, 10 de junho de 2016

Sobrados da Rua Maria José / Bixiga

Meio milhão de views!!!  e  ???

Em 15/05/2014, nas minhas caminhadas, passeando pelo Bixiga, fotografei um conjunto de sobrados recém-restaurados. Para ver como eram no passado procurei o endereço no Google Maps (Rua Maria José, equina com a Av. Brig. Luis Antonio) encontrei a imagem antiga, de Fev/2010, estavam completamente em ruínas.

Surpreendido com a diferença, resolvi publicar as duas imagens lado a lado. Antes, envergonhado com a obscena fiação exposta do Bixiga, uma catástrofe pendurada, retirei estes artefatos indesejados da foto mais recente.


Fotografia original Maio/2014


Me espanta o alcance desta postagem. Periodicamente as fotos são redescobertas e acontece um novo surto de curtição. Atualmente já passa dos 500 mil views, 50 mil curtidas e 10 mil comentários.

No excelente site ‘São Paulo Antigo’ existe uma longa postagem sobre a restauração desta vila, infelizmente sem detalhes da história da construção, datado de 08/Julho/2009. Curiosamente, segundo o Google, em 2010, os sobrados ainda estavam em ruínas.



Atualmente todos os sobrados estão ocupados por pequenas empresas e estúdios.


Gostaria muito de visitar algum deles, como aconteceu em outra joia paulista restaurada e preservada: Parque Savoia. 


quarta-feira, 20 de abril de 2016

ANJO DO CASTELINHO DA RUA APA


O Crime do Castelinho da Rua Apa é a tragédia favorita dos paulistanos. Porém, o que poucos sabem, é que existe um ‘anjo’ que sobreviveu por décadas à história.

O imbróglio eclodiu em 12 de maio de 1937, uma quarta feira. Convocada, a polícia encontrou três cadáveres num palacete com torrinha na Avenida São João. A mãe (Maria Cândida Guimarães dos Reis, 73) – a vítima maior - mais dois filhos (Álvaro Cézar dos Reis, 45, e Armando Cézar dos Reis, 43). Conclui-se por assassinato duplo e suicídio, apesar das incongruências na dúbia cena dos crimes.

Naquele momento a cidade, empoderada pela industrialização, surfava numa enorme onda de crescimento. O morticínio aconteceu na região mais sofisticada de S.Paulo, os Campos Elísios, e envolvia a nata da elite bandeirante. Álvaro, o playboy, vítima ou assassino múltiplo, era um ‘sportman’ celebrado, dono de cinema, exímio e conhecido patinador e proprietário da primeira moto ‘Indian’ que estridulou pelas avenidas da paulicéia desvairante.

Talvez seja nosso mistério preferido porque deixou um castelo abandonando e em ruínas, carregado de persistentes relatos de fantasmas vagantes e intranquilos reivindicando justiça. Virou um alfinete magenta-piscante enterrado no mapa da cidade.

O Castelinho – enfim e aleluia - foi restaurado. Era a intervenção mais reclamada e exigida em todos os grupos e sites que cuidam da memória de Sampaulo.

Entretanto, o ponto mais extraordinário dessa história, a estrela de maior grandeza dessa galáxia de versões, enigmas e lendas que se expande vertiginosamente em torno do crime pela Internet, é o “Anjo do Castelinho da Rua Apa”. Uma personagem menor, comprimária nessa ópera sangrenta. Talvez seja imprescindível destacar alguma coisa radiante – além do bem e do mal - para contrastar essa desgraça tão cheia de desamor.

‘Baby’ – a Dona Maria Cândida da Cunha Bueno, namorada de Álvaro, o playboy, que foi apontado pela polícia como homicida e suicida. Era uma destas mulheres excepcionais, capazes de parir as virtudes do mundo.

Escassamente fotografada, Baby, da alta burguesia paulista, era uma libertária intrépida e prematura. Atropelava todas as convenções conservadoras da época. ‘Separada’ do marido, quando isso era proibido por Deus e pelos homens, por dez anos 'ficou’ junto com o namorado, quando esta expressão ainda nem tinha sido inventada.

Contudo, o mais espantoso da saga, foi sua absoluta fidelidade ao amado morto. Sempre defendeu a inocência do parceiro, afirmava o que o matador era o irmão mais novo, Armando, o moço 'sério, mas de espírito maligno'.

E não para aí, o mais bonito desse drama insólito é que Dona Maria Cândida da Cunha Bueno, a perpétua Baby, que viveu quase reclusa por 51 anos, tinha uma missão sagrada – desde o crime em 1937, até sua morte em 1988, com 97 anos – todo mês, dia 12, para prantear a morte do parceiro querido, levara flores no túmulo do amante, no Cemitério da Consolação.

Mais ainda, depois de morta deixou parentes encarregados desta obrigação e prova de amor, que, garantem, ainda é cumprida até hoje.



Túmulo da Família Reis no Cemitério da Consolação



Foto rara de ‘Baby’
Dona Maria Cândida da Cunha Bueno

Em 07/abril/17 na reinauguração do Castelinho da Rua Apa, Andreia Venturoso afilhada de Dona Baby comentou duas vezes esta publicação e colocou uma fotografia rara da 'Anja do Castelinho'.

Andreia Venturoso Essa história é verdadeira e dona Baby é minha madrinha de batismo, me comove sempre em lembrar, ela faleceu em 1988 com 97 anos

Andreia Venturoso Essa foto é do meu batizado em 1971! Madrinha Baby a esquerda










domingo, 27 de março de 2016

GAVETA DE SONETOS

[...]
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|| 1,2... infinito ||
Os Teóricos Quânticos,
Alquimistas de conceitos e assombros,
afirmam que déjà-vu’s
são hiatos entre universos paralelos.
Espantosos como uma equação
cuja soma de muitos nadas
resultasse em tudos.



terça-feira, 15 de março de 2016

Perfumes do Machado


Publicado como e-book na Amazon



Ao Leitor Paciente

Tinha uns 16 anos quando a grandeza de Machado de Assis foi captada pelo meu radar. Surgiu como um desafio, um professor provocou: “só vai entender direito depois dos 25”. Foi como atear fogo num pavio, comecei a lê-lo imediatamente, parecia a porta de entrada para o mundo dos adultos.

Nunca parei, não sei se já me  tornei adulto, mas ainda passeio regularmente pelas obras completas do nosso gênio da raça. Em especial pelos seus cinco grandes romances. Sempre estou relendo algum deles. De repente – enquanto revisitava
Dom Casmurro – fui tentado pela ideia de um conto. Durante a escritura o projeto evoluiu para uma proposta mais ambiciosa: cinco noveletas curtas recontando as maiores obras do Bruxo.

Desse desatino, homenagem e diversão resultou o livro
'Perfumes do Machado’.

A temerária aventura de retomar as principais histórias de Machado virou um repto com regras rígidas. Os acontecimentos seriam transferidos para S. Paulo, contudo os temas principais (como os percebia) e os inventivos esquemas narrativos do mestre deveriam ser preservados e obedecidos.

Assim,
“Dom Casmurro, in pectore” gira em torno de uma dúvida jamais elucidada. “Quincas Borba IV” conta uma paixão pós 68 atropelada pela ingenuidade política. “mpbc.com” é uma decifração do sentido da vida revelada por emails enviados por um morto. “Isaú+Jacó” e “‘Memory All’ de Aires” estão interligados, têm o mesmo narrador. O primeiro acompanha a trajetória dos gêmeos que vivem o mesmo destino, porém em dois momentos diferentes. O segundo segue as tribulações de uma ‘viúva’, com nome de ópera, que tenta superar os desacertos com o antigo parceiro.

Foi muito bom jogar este jogo e tramar situações inusitadas para recontar as incríveis criações do nosso escriba maior, talvez interessantes, mas, indubitavelmente, sem o mesmo brilho.

Douglas Bock

segunda-feira, 14 de março de 2016

OS PASSEIOS DAS MUSAS IMPASSÍVEIS


Apesar do nome a ‘Musa Impassível’ é uma deusa inquieta, vive passando por metamorfoses. Inicialmente era um par de sonetos da poetisa Francisca Julia, depois virou uma escultura em mármore de Victor Brecheret, e mais tarde se reinventou como uma estátua de bronze. Talvez valha a pena revisitar as manifestações desta deusa móvel e silente, porque se constituem numa bela saga paulistana.

O emaranhado de lendas que cerca a musa de pedra, com alma de moça séria, é uma mistura de tudo: fofocas, mistérios, dúvidas, palpites. Têm batalhas literárias; morte misteriosa; extremos de fidelidade conjugal; um antigo amor secreto e provas de amizade inquebrantável. Existe até um filme, bonito e bissexto, sobre TOC - Transtorno Obsessivo-Compulsivo, que rouba o nome e homenageia a escultura.

A origem desse universo em expansão é um lindo par de poemas: ‘Musa Impassível’. Sonetos de Francisca Júlia publicados no livro ‘Mármores’ de 1895 (leia abaixo). Foi a partir destes versos que Brecheret concebeu sua musa, em mármore, como sugeria o título do livro.

Francisca Júlia César da Silva Münster viveu 49 anos, de 1871 a 1920 e é considerada a maior poetisa de sua época. Alguns críticos argumentam que o masculino trio de ouro parnasiano (Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira) deveria virar um quarteto misto e incluir Francisca Júlia. A qualidade de seus poemas publicados (60 ±) justifica esta pretensão.

A vida da autora do par de sonetos ‘Musa Impassível’ não é simples, está repleta de tribulações e gestos peremptórios. Falam da fuga de um amor truncado em Cabreúva; da mudança para S. Paulo – Guaianases; de seu exigente rigor artístico; de um casamento por amor sincero com um telegrafista da E. F. Central do Brasil; da solidariedade na doença terminal do marido; da imensa fidelidade conjugal; da recusa a assumir uma cadeira na fundação da Academia Paulista de Letras (condicionou a aceitação à entrada do irmão e parceiro – Jose Cesar da Silva – também poeta). Muitos ouviram a esposa amorosa afirmar que “jamais poria o véu de viúva”. Cumpriu a promessa, foi enterrada um dia depois do marido, acrescentando um possível suicídio ao ciclo de lendas.

Quanto as esculturas, a primeira, a versão em mármore, esculpida por Victor Brecheret, entre 1921 e 23, está exposta na Pinacoteca. A segunda, a cópia em bronze, moldada pelo Liceu de Artes e Ofícios em 2007, enfeita o túmulo da poetisa no Cemitério do Araçá. Ambas as versões são visitáveis. Brecheret conseguiu captar com precisão a entidade evocada pelo poema, que parece representar o alter ego da poetisa, belíssima, altiva e distante.

Plasticamente a figura é estranha, ambígua e desconcertante. Da cintura para baixo mostra uma mulher majestosa e sensual, os véus e drapejados mal conseguem esconder as excitantes formas femininas. O torso, porém, remete a deusa-mãe interditada e a amante ressonhada. Sobretudo por causa dos túmidos seios rompantes e do rosto austero, porém dócil e benevolente. Existe um vão infinito separando estes dois recortes. Um abismo intransponível – intrinsecamente parnasiano – que contrapõe os desejos primitivos à serena busca de sabedoria e elevação.

A musa de mármore ficou 83 anos (de 1923 a 2006) ao relento velando o túmulo de Francisca Júlia no Cemitério do Araçá. Impassível, esquecida e desprestigiada. Aliás, como a obra da poetisa, degredada pela revolução artística proposta pela Semana de Arte Moderna.

Aí aconteceu uma dessas coisas que às vezes evidencia a resiliência do velho espírito paulista e bandeirante. Em 2006, Sandra Brecheret, filha do escultor, resgatou a belíssima obra do pai e começou a promover a recuperação da estátua. Foi montada uma ampla operação multidisciplinar de restauração. (Ver fotos da mudança na SP Antigo - http://www.saopauloantiga.com.br/a-historia-da-musa-impassivel/). A musa, remoçada e renovada, foi abrigada das intempéries num dos pátios da Pinacoteca. Hoje, talvez seja a principal anfitriã daquela instituição.

No túmulo da poetisa – a verdadeira e perene 'Musa Impassível' – foi colocada uma cópia em bronze, mais resistente ao tempo, capaz de enfrentar melhor o avanço da História, exibindo e guardando para o futuro as verdes manchas das saudades.

(1) - MUSA IMPASSÍVEL - Poema de Francisca Júlia

Musa Impassível

I

Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.

Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.

Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;

Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.

II

Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.

Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.

Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,

E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.

Publicado no livro Mármores (1895).

In: JÚLIA, Francisca. Poesias.
Introd. e notas Péricles Eugênio da Silva Ramos.
São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 196


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

GRAFITES INVADER – Veja Antes Que Acabe

Apesar de S. Paulo se proclamar a Capital Mundial do Grafite, em geral, as pessoas não gostam muito desta arte. Abominam aquelas escrituras ilegíveis (pixo reto) que degradam os prédios e a paisagem, especialmente nas periferias. Também não apreciam os desenhos ultra coloridos que ocupam as paredes mortas, viadutos e avenidas, avançando sobre os monumentos da cidade. Talvez seja uma guerra perdida, porque o Grafite faz parte dessas novas mitologias que estão invadindo as urbes, os museus e as mentalidades.

Uma das frentes dessa ‘invasão’ é o trabalho do ‘Invader’, um dos mais famosos grafiteiros do mundo, que mantem sua identidade incógnita, feito super-herói. Seu apelido vem de um joguinho chamado ‘Space Invaders’ lançado em 1978, nos primórdios dos games, ainda em 8-bits, e com gráficos esquemáticos e quadriculados. Seus trabalhos (ou invasões) não usam tintas, são colagens de mosaicos ou azulejos inspiradas na estética e nos personagem dos games antigos.

Suas invasões abrangem mais de 50 cidades em todos os continentes. São secretas e muito bem planejadas e documentadas.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

AMORES DEPOIS DOS 50 - 'Betibú


A expectativa de vida (no Brasil) é de 75 anos, e crescendo. A quantidade de homens e mulheres bonitos e saudáveis, com mais de 50 anos, sem relacionamentos ‘sérios / explÍcitos’ – difícil encontrar a palavra certa - é imensa, talvez maior do que o contingente de jovens.

Porém, na Literatura e outras fabulações (cinema, novelas, séries), parece que a idade limite para envolvimentos emocionais e sensuais prazerosos e estimulantes é de 50 anos. Nessa matemática sobram mais de 30 anos para o papel de tios e tias com envolvimentos envergonhados, clandestinos ou, e pior, não valorizados.

Outro dia li um interessante policial argentino, Betibú  que virou filme (aquém do livro),  escrito por uma mulher, Claudia Piñeiro (58 anos), com um casal romântico inesperado.

Uma escritora de mais de 50 anos, desgostosa da profissão, mãe de dois filhos adultos, divorciada e mortalmente ferida pelo último parceiro. Cada vez mais assediada pelas celulites e gordurinhas indesejadas, com o peito e a bunda meio caídos. O homem era um velho jornalista sessentão, aposentado e, também, desiludido com os rumos de sua carreira. A barriga já era capaz de vencer qualquer cinto por vários furos de deselegância. O amor maduro, cheio de desejos e antecipações, do inesperado par romântico era muito bem construído, com carinho, doçura e sutileza.

Contudo, na cena final, me espantou a reversão de expectativas. Quando os amantes, tomados pela paixão, correm para o apartamento de um deles, a autora, que conduzia bem a narrativa com sensibilidade, verossimilhança e delicadeza, decidiu narrar o encontro imaginando como uma nebulada sequência filmada.  cambiando os personagens por astros de Hollywood. Começou genial, acabou banal.

Quase parei de ler. Vergonha ou sacanagem de Claudia Piñeiro? Queria amantes imperfeitos, com sobrepeso, estrias e cabelos grisalhos. Somos maioria e há um carinho especial nisso, nesta fase. 

Vejo multidões de pessoas, intelectualmente ativas, esbanjando bom gosto e sabedoria, correndo, malhando e fazendo regime para se manter saudável. Contudo, infelizmente, ainda amarradas – emocional, sentimental e sexualmente nos quadros de referências da juventude delas próprias, anos 60/70. Naqueles tempos um cinquentão já se era irreversivelmente velho. Hoje isso é apenas o início da outra metade da vida. Quem sabe a melhor parte.

Será que estamos todos desiludidos e desgostosos, fadados a consumir histórias de sonhos e valores juvenis. Tesões reciclados, permitidos apenas se relembrados?

terça-feira, 19 de janeiro de 2016

SERÁ QUE O MINHOÇÃO TEM JEITO?

Caminhar pelo Elevado Costa e Silva  ou Minhocão  é um bom exercício físico e cívico. Pelo jeito a cidade esta pegando gosto por este programa, cada vez mais popular, com mais gente.

Já existe uma organização interessada em promover o lugar, ‘Parque Minhocão’. Alguns pontos exibem banners da associação estendidos anunciando wi-fi grátis. A ideia é ótima, mas no meu celular não funcionou.

Também, parece que existe pouco empenho da Prefeitura em facilitar e estimular a frequentação. Por exemplo, têm poucos acessos ao espaço, somente as rampas normais de trânsito. Pensando no ‘high line’ em Nova York não é bastante, lá existem escadas de acesso em diversas ruas.

O Minhocão é uma cicatriz de mais de três quilômetros que rasga e deforma a face de S. Paulo, abduzindo belos edifícios para cenários ciberpunk. Por exemplo, o Castelinho da Rua Apa que fica ao lado? Imaginem como ficaria bacana se virasse uma lanchonete com escada de acesso para o parque elevado?

Numa região carente de áreas de lazer é meio incongruente ver a complexa operacionalização das ciclofaixas, na maior parte do tempo vazias, e o Minhocão, repleto de gente, e sem esquemas de incentivo e apoio.

Um passeio pelas autopistas vazias é interessante e questionador, mostra um pouco dos intestinos e do  coração da nossa Paulicéia - que já foi desvairada - e hoje está desatinada.

quinta-feira, 7 de janeiro de 2016

Considerações Vadias

Livros, o excesso e a falta deles



Durante minhas caminhadas diárias, de 90 minutos, ouço podcasts, viciado pelos meus filhos. Normalmente escolho Cultura Pop, Cinema ou Literatura.

Ontem, ouvindo no PODOCAST GHOST WRITER (http://programagw.podomatic.com/) a entrevista de Ryoki Inoue, um nissei brasileiro apontado pelo Guiness como o mais profícuo escritor do mundo, com mais de 1.500 títulos publicados, tive dois picos cognitivos. 

Matei uma velha curiosidade. Quem eram os autores daqueles livrinhos em papel amarelo, baratos como um maço de cigarro e pequenos como um lenço, que cabiam no bolso de trás das calças jeans? 95% de chances de – qualquer deles – ser obra do Ryoki Inoue, um médico que largou o profissão para escrever. Fiquei até com vontade de relê-los.

Pessoa fantástica certamente, o japonês multiplicado, vale a pena curtir suas histórias no Google. Contudo, o que me mais prendeu minha atenção foi o comentário de Luiz Eduardo da Matta, um jovem romancista carioca que participava do podcast.

Falou que numa das versões do BBB (não importa o número, porque a unidade já é excessiva) tiraram todos os livro da tal casa quando perceberam que os participantes passavam tempo demais lendo.

Me surpreendeu que lessem e fiquei confuso com  a reação da Globo. Prestaram um mau serviço, porque, além de desestimular a leitura do publico, evitaram que os ‘brothers’ ganhassem cultura.

Mas, refletindo melhor, talvez tenham feito o bem. E se um ‘brother’, lendo algum livro, e se achando um gênio, resolvesse se candidatar a deputado?