Apesar do nome a ‘Musa Impassível’ é uma deusa inquieta, vive passando por metamorfoses. Inicialmente era um par de sonetos da poetisa Francisca Julia, depois virou uma escultura em mármore de Victor Brecheret, e mais tarde se reinventou como uma estátua de bronze. Talvez valha a pena revisitar as manifestações desta deusa móvel e silente, porque se constituem numa bela saga paulistana.
O emaranhado de lendas que cerca a musa de pedra, com alma de moça séria, é uma mistura de tudo: fofocas, mistérios, dúvidas, palpites. Têm batalhas literárias; morte misteriosa; extremos de fidelidade conjugal; um antigo amor secreto e provas de amizade inquebrantável. Existe até um filme, bonito e bissexto, sobre TOC - Transtorno Obsessivo-Compulsivo, que rouba o nome e homenageia a escultura.
A origem desse universo em expansão é um lindo par de poemas: ‘Musa Impassível’. Sonetos de Francisca Júlia publicados no livro ‘Mármores’ de 1895 (leia abaixo). Foi a partir destes versos que Brecheret concebeu sua musa, em mármore, como sugeria o título do livro.
Francisca Júlia César da Silva Münster viveu 49 anos, de 1871 a 1920 e é considerada a maior poetisa de sua época. Alguns críticos argumentam que o masculino trio de ouro parnasiano (Olavo Bilac, Raimundo Correia e Alberto de Oliveira) deveria virar um quarteto misto e incluir Francisca Júlia. A qualidade de seus poemas publicados (60 ±) justifica esta pretensão.
A vida da autora do par de sonetos ‘Musa Impassível’ não é simples, está repleta de tribulações e gestos peremptórios. Falam da fuga de um amor truncado em Cabreúva; da mudança para S. Paulo – Guaianases; de seu exigente rigor artístico; de um casamento por amor sincero com um telegrafista da E. F. Central do Brasil; da solidariedade na doença terminal do marido; da imensa fidelidade conjugal; da recusa a assumir uma cadeira na fundação da Academia Paulista de Letras (condicionou a aceitação à entrada do irmão e parceiro – Jose Cesar da Silva – também poeta). Muitos ouviram a esposa amorosa afirmar que “jamais poria o véu de viúva”. Cumpriu a promessa, foi enterrada um dia depois do marido, acrescentando um possível suicídio ao ciclo de lendas.
Quanto as esculturas, a primeira, a versão em mármore, esculpida por Victor Brecheret, entre 1921 e 23, está exposta na Pinacoteca. A segunda, a cópia em bronze, moldada pelo Liceu de Artes e Ofícios em 2007, enfeita o túmulo da poetisa no Cemitério do Araçá. Ambas as versões são visitáveis. Brecheret conseguiu captar com precisão a entidade evocada pelo poema, que parece representar o alter ego da poetisa, belíssima, altiva e distante.
Plasticamente a figura é estranha, ambígua e desconcertante. Da cintura para baixo mostra uma mulher majestosa e sensual, os véus e drapejados mal conseguem esconder as excitantes formas femininas. O torso, porém, remete a deusa-mãe interditada e a amante ressonhada. Sobretudo por causa dos túmidos seios rompantes e do rosto austero, porém dócil e benevolente. Existe um vão infinito separando estes dois recortes. Um abismo intransponível – intrinsecamente parnasiano – que contrapõe os desejos primitivos à serena busca de sabedoria e elevação.
A musa de mármore ficou 83 anos (de 1923 a 2006) ao relento velando o túmulo de Francisca Júlia no Cemitério do Araçá. Impassível, esquecida e desprestigiada. Aliás, como a obra da poetisa, degredada pela revolução artística proposta pela Semana de Arte Moderna.
Aí aconteceu uma dessas coisas que às vezes evidencia a resiliência do velho espírito paulista e bandeirante. Em 2006, Sandra Brecheret, filha do escultor, resgatou a belíssima obra do pai e começou a promover a recuperação da estátua. Foi montada uma ampla operação multidisciplinar de restauração. (Ver fotos da mudança na SP Antigo - http://www.saopauloantiga.com.br/a-historia-da-musa-impassivel/). A musa, remoçada e renovada, foi abrigada das intempéries num dos pátios da Pinacoteca. Hoje, talvez seja a principal anfitriã daquela instituição.
No túmulo da poetisa – a verdadeira e perene 'Musa Impassível' – foi colocada uma cópia em bronze, mais resistente ao tempo, capaz de enfrentar melhor o avanço da História, exibindo e guardando para o futuro as verdes manchas das saudades.
(1) - MUSA IMPASSÍVEL - Poema de Francisca Júlia
Musa Impassível
I
Musa! um gesto sequer de dor ou de sincero
Luto jamais te afeie o cândido semblante!
Diante de um Jó, conserva o mesmo orgulho; e diante
De um morto, o mesmo olhar e sobrecenho austero.
Em teus olhos não quero a lágrima; não quero
Em tua boca o suave e idílico descante.
Celebra ora um fantasma anguiforme de Dante,
Ora o vulto marcial de um guerreiro de Homero.
Dá-me o hemistíquio d'ouro, a imagem atrativa;
A rima, cujo som, de uma harmonia crebra,
Cante aos ouvidos d'alma; a estrofe limpa e viva;
Versos que lembrem, com seus bárbaros ruídos,
Ora o áspero rumor de um calhau que se quebra,
Ora o surdo rumor de mármores partidos.
II
Ó Musa, cujo olhar de pedra, que não chora,
Gela o sorriso ao lábio e as lágrimas estanca!
Dá-me que eu vá contigo, em liberdade franca,
Por esse grande espaço onde o impassível mora.
Leva-me longe, ó Musa impassível e branca!
Longe, acima do mundo, imensidade em fora,
Onde, chamas lançando ao cortejo da aurora,
O áureo plaustro do sol nas nuvens solavanca.
Transporta-me de vez, numa ascensão ardente,
À deliciosa paz dos Olímpicos-Lares
Onde os deuses pagãos vivem eternamente,
E onde, num longo olhar, eu possa ver contigo
Passarem, através das brumas seculares,
Os Poetas e os Heróis do grande mundo antigo.
Publicado no livro Mármores (1895).
In: JÚLIA, Francisca. Poesias.
Introd. e notas Péricles Eugênio da Silva Ramos.
São Paulo: Conselho Estadual de Cultura, 196