Muita vez, correndo os olhos pelas
estantes das livrarias – ou dos amigos, passamos por territórios literários que já exploramos com prazer em longas leituras: Machado de Assis, Fernando
Pessoa, Drummond, Dostoiévski, Hesse, Proust, Borges... Galáxias de saudades coruscantes.
Estes olhares pervagantes são perigosos, porque atiçam e
avivam um tipo muito peculiar de emoção: as 'saudades dos livros lidos'.
Infelizmente, mesmo os melhores livros, a gente só lê uma vez. Depois só é possível revisitar,
relembrar ou matar saudades. Ler de verdade – com excitação, pressa, curiosidade e fôlego preso – só a primeira vez.
É impossível descrever a vertigem de sentimentos que as primeiras leituras dos bons livros
desencadeiam nas almas dos leitores sensíveis. Uma experiência singular que
cada pessoa vivencia apenas uma vez. Feito as grandes paixões, são vincos e dobras
que marcam nossas almas para sempre.
Não existe escapatória, podemos
reler infinitas vezes; revisitar os trechos preferidos; estudar as melhores
passagens e capítulos; decorar pedaços inteiros; escrever teses de mestrado...
Porém, nunca recuperamos o impacto do primeiro contato.
Como não se deslumbrar e se
entregar às dubiedades de Capitu, de Dom Casmurro? Não se
maravilhar com as peregrinações de Harry Haller, o ‘outsider’ d’O Lobo da
Estepe? Não se arrepiar com a descida aos instáveis interiores de
Raskólnikov, no Crime e Castigo? Reviver as incertezas de
Riobaldo, nos Grandes Sertões: Veredas? Sentir uma incômoda
solidariedade com Gollum no Senhor de Aneis?
O mundo dos livros têm infinitas veredas,
cada leitor cria seu próprio itinerário. Contudo o primeiro contato com um
livro é sempre mágico: inesquecível e, infelizmente, irrecuperável.
Quando temos sorte, algum dia, por casualidade,
alguém nos fala, ou lemos num artigo, ou esbarramos numa livraria com um novo e desconhecido autor (Elias Canetti, Kawabata Yasunari, Osman Lins?). Parece que descobrimos uma galáxia ainda não catalogada. Somos presenteados com uma
nova, longa e excitante exploração. Dependendo da velocidade de leitura são meses
ou anos de novos prazeres inesperados. Um dia, de repente, o novo fica velho,
cartografado no nosso mapa de delícias, e vira 'saudades dos livros lidos'.
Por isso – mesmo sendo uma resolução insana – é recomendável guardar algum autor, comprovadamente bom, sem nunca
lê-lo. Preservar, resguardada na estante, esta chance do deleite inigualável da primeira leitura.
Deve-se abster, inclusive, de
folhear os livros do autor reservado para não cair na tentação de começar a
ler. Porque não dá para saber se algum dia não seremos abduzidos para uma ilha deserta, com
direito apenas a uma escolha?
É como pagar um seguro ou fazer
um investimento no futuro.
Eu, por exemplo, apesar da curiosidade, apenas olho fotografias de Clarice Lispector (minha reserva pessoal), posso até ler sua
biografia e suas citações. Entretanto, nunca fraquejo e me atrevo a abrir algum dos seus livros. Porque, tenho certeza absoluta, ela é tão boa que, inexoravelmente, depressa, vai se converter em uma nova 'saudade dos livros lidos'.