Rio de Janeiro, 10 de
Dezembro 1935
Querido Mário de
Andrade:
No começo de nossa
amizade, em 1921, firmamos um ‘pacto pagão’. Combinamos que nossas conversas
seriam sempre face a face, francas e livres. Sem segredos nem discussões religiosas, políticas ou morais. Penso que fui eu a propor o acordo porque tenho
a cabeça panda de incoerências. Sobre Religião coleciono certezas
absolutas, sobre Política (como monarquista ou sebastianista sem rei) não sei
me explicar direito e ainda estou inventando uma moral para caber dentro dela.
Concordamos, acima de tudo, em não trocar correspondências. As cartas são como fotografias, tentam deter o rio de Heráclito. E as relações humanas são dinâmicas, repletas de nuances,
até as lembranças são falazes e enganosas. Sempre é melhor conversar, viver o momento e
falar da cor real de cada coisa. Sei que és um missivista compulsivo e que
nossos encontros são esparsos, mas calculo que a decisão foi acertada.
Estou quebrando a
regra acordada porque fui te procurar em S. Paulo e não encontrei. Sabes
que, no Brasil, és meu mais próximo e confiável amigo. Era imperativo te falar
sobre as estranhezas que aconteceram comigo duas semanas atrás.
Era quarta feira, dia
27 de novembro, estava visitando uma amiga e, antes do jantar, fui lavar as
mãos. Quando me olhei no cristal prateado vi-me refletido como um retrato em preto
e branco. Assustado, fiquei atento aos detalhes e percebi que a sombra também
havia sumido. O efeito durou uns cinco minutos, depois tudo voltou ao normal.
Conclui que foi uma vertigem, um delírio ou um mal estar e não dei muita
importância.
Resolvi tomar o
primeiro trem para S. Paulo para conversar contigo. Tive a precaução de
escolher ternos, camisas, gravatas e chapéu claros ou brancos e passar numa
farmácia. Apresentei-me como médico e falei de uma doença estrangeira. O
atendente me olhou espantado e confuso, mas foi solícito, recomendou, para
disfarçar, um desses artifícios que as mulheres usam para empoar o rosto.
Cheguei a tua
paulicéia desvairada sábado bem cedo, me hospedei no Hotel Esplanada e tentei,
o dia inteiro, falar contigo. Não consegui. Todos nossos amigos comuns me
avaliavam ressabiados, e todos corroboraram que depois da tua nomeação para
Diretor do Departamento de Cultura tinhas sumido do convívio, andavas sempre
ocupado, sem paradeiro conhecido e sem tempo para nada.
Permaneci no hotel
decidindo o que fazer. No meio da tarde, lá pelas quatro horas, duas coisas
aconteceram, uma surpreendente outra inesperada. Primeiro, de repente, a cor do
meu corpo se estabilizou. Havia me transformado, permanentemente, numa
personagem de fita de cinema, um homem vivo em preto, branco e tons de cinza,
nenhuma outra cor participava do espectro. Ainda estava me acostumando com a nova situação
quando Juzé, aquele sábio português que mora na Ladeira da Memória, bateu na
minha porta.
Lembra-te? Quando me
apresentaste a ele garantiste que já estava no Brasil na época do
descobrimento. Agora quase acredito nisso. Juzé soubera que andava à tua
procura e gostaria de ajudar no que pudesse. Apreciei a solicitude e a
disponibilidade dele, conversamos a tarde inteira e acabamos jantando juntos.
Foi boa a palestra, o
homem acompanhava tudo o que estava acontecendo nas letras portuguesas, e
especialmente no nosso grupo. Havia conhecido Alberto Caieiro e gostava de ler
Fernando Pessoa, Álvaro de Campos e meus poemas. Durante a conversa Juzé fez
uma previsão enigmática, disse que num mundo mais estável Fernando ganharia o
Prêmio Nobel. Não entendi direito e ele não quis se auto decifrar.
Mário, falei-te muito
desses poetas e mostrei-te vários poemas deles. Também já discutimos a relação
esquisita que existe entre nós quatro e nossas obras. Às vezes desconfio que
dividimos o mesmo espirito (ou a mesma alma cristã). Parece que vasos
comunicantes ligam os quatro num mesmo inconsciente compartilhado. Alguns
poemas meus são pensamentos de Fernando ou Álvaro escritos com minhas palavras.
E alguns poemas deles são meus sentimentos transcritos de outro jeito. Tudo que
acontece com cada um de nós afeta todos os outros.
Mas voltando ao Juzé,
quando lhe contei sobre minha metamorfose cromática ele escutou meu relato
atenciosamente, porém perguntou apenas quais as últimas noticia que tinha de
Fernando e Álvaro. Respondi que não sabia nada de novo. Fiquei aturdido, ao
invés de discutir minhas mudanças de coloração ele só murmurou “isso acontece”
e se embrenhou em parábolas intrincadas.
Enumerou as
turbulências que estavam varrendo o mundo: a revolta comunista no Brasil; a
mudança de governo em Portugal; a revolução da Espanha; as agitações na
Alemanha e Itália. Explanou que havia excesso de tensão nas fibras e tramas da
realidade, ficava fácil eclodirem e prosperarem situações e desdobramentos
bizarros. No fim da noite Juzé me acompanhou até a estação, antes do trem
partir me aconselhou efusivamente a voltar para Portugal o mais breve possível.
Sabes tudo sobre
minha pessoa, Mário. Sou ataráxico na ação, gosto de observar o mundo sem tomar
partido e sem me imiscuir nele. Meu desejar é intempestivo, sempre estou no
local errado por motivos erráticos, querendo estar em outro lugar. Fiquei quase
20 anos no Brasil, cogitando voltar a Lisboa, sem me decidir a partir. Agora
vou, já reservei as passagens. Tenho sonhado muito com Fernando. Toda noite, no
amanhecer, ele aparece de mansinho e me lembra: “precisas voltar”.
Nosso ‘pacto pagão’
está suspenso até discutirmos novas regras. Se receber cartas tuas lerei com
prazer. Mas quero ressalvar, poderei ser omisso nas respostas. Não gosto de
escrever cartas pessoais nem tirar fotografias. Evito deixar atrás de mim
pedaços mumificados da existência. Assim, depois do que contei, espero-te em Lisboa,
porque não aposto voltar ao Brasil.
Um abraço
Ricardo Reis.
P.S. - Antes de
fechar a carta soube que Fernando Pessoa morreu no dia 30 de Novembro às oito horas da
noite. Quatro no Brasil, exatamente no momento em que virei personagem de cinema ou
desenho a crayon. Preciso entender melhor isso.
O tempo de um corpo ectoplasmático conter sua alma em algum lugar adormecido, não usa e pressupõe regras, mas, como ele será a voz e a mente daquele que afinal sua passagem se propagou?
ResponderExcluirOu ele me tornou uma pessoa, um ser enquanto ser, uma visão dele em um corpo por nele se deliciado, satisfeito perene daquele mundo que a ambos não compreendia?
Eita carta!
ResponderExcluir@nelsonteixeira.com, A ideia original do conto vem de Saramago, uma brincadeira com o livro 'O Ano da Morte de Ricardo Reis', mas, obviamente, comporta outras leituras, inclusive algumas espiritualistas.
ResponderExcluirAntonio Montes, Obrigado pelo comentário. Seria uma carta historicamente possível.
ResponderExcluirDas tristezas e dores da alma humana!!!Dos cinzas que dominam nosso olhar,quando estamos tristes.Da pré cognição do momento da chegada da morte. Pode ser tudo isso,um pouco disso,ou simplesmente a fala do artista.
ResponderExcluirObrigado Ida Guttenberg, o mundo é vasto e nosso saber escasso.
ResponderExcluirTranscrito do Facebook - Comentário do Musicólogo e Poeta José André Lôpes Gonçâles (André Da Ponte)
ResponderExcluir“”Isso que tu escreveste, meu caro Douglas Bock, é do melhor que tenho lido nos últimos tempos. Sei que tanto Pessoa (ou o seu alter-ego Ricardo Reis) e Mário de Andrade dão para um bom jogo de encontros e desencontros, mas a cousa não está no próprio jogo, todavía no relato desses encontros e oposições. O final fica muito emocionante desde que Mário de Andrade sabe do pasamento do latinista, monárquico, poeta um bocado epicúreo e estoico. E aí entra em jogo Saramango que em O Ano da Morte de Ricardo Reis afirma que: "sábio é aquele que se contenta com o espectáculo do mundo". Você nesse texto abalroa a literatura. Parabéns, meu caro.””