Entrei num sebo em Veneza, perto da Igreja de Santa
Maria Formosa – uma região de antiquários. A loja era estranha e intrigante, meio
navegante, meio delirante, como os contos de Borges. Uma
sequência de 20 – ou infinitas – salas e cubículos mal iluminados, com janelas
e portas altas e baixas, pequenas e grandes que se abriam para um canal
estreito e ensombrado, apesar do sol brilhante.
Os livros – muitos milhares – estavam dispostos em
pilhas úmidas que brotavam diretamente dos chãos, de ladrilhos multicentenários ou calçamentos rudes e ásperos. Formavam paredes, evocavam labirintos, provocavam assombros. Uma pequena parte, sobretudo os Livros de Arte, estavam viajando, expostos em velhas gondolas, barcos, banheiras, carinhos de
jardinagem e outras esquisitices espalhadas pelos corredores ou dependuradas nas
paredes, como estantes improvisadas.
Havia indicações de seções e setores – de um humor
arrevesado – sinalizando cantos escuros e quartos abarrotados: ‘livros para
garotos que não conhecem o medo’; ‘policiais americanos de autores
suspeitos’; ‘receitas para donnas audazes’, ‘cinema dos tempos bons’. Mais que letreiros, lembravam propostas
indecentes, chamadas do flautista de Hamelim, ou propagandas de Literatura
Weird.
Arrisquei ‘cinema dos tempos bons’. Era
tentador, centenas de coloridos e expressivos cartazes de todos os velhos filmes
italianos clássicos: ‘Rocco e i suoi fratelli’, ‘Vaghe stelle dell'orsa’,
‘Il gatto a nove code’, ‘Anonimo Veneziano’ e muitos outros que nunca tinha visto ou ouvido
falar. Me arrependi de não ter trazido todos.
De repente, caminhando por aquele sebo anfíbio veneziano, por aquela infinidade de colunas de alfarrábios e estantes
replicadas, constatei apreensivo a imensidade de livros se desfazendo, quase se
liquefazendo e escorrendo para o canal. Como se fossem letrados musgos esverdeados de Lovecraft. Comecei a pensar na compulsão de escrever; e, um
pouco, na veleidade de publicar.
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Dois dias depois fui visitar a Biblioteca Marciana
(Biblioteca Nazionale Marciana), talvez, a mais antiga biblioteca pública do mundo moderno, localizada num dos
Palácios da Praça São Marcos, à beira do Grande Canal.
Num dos folhetos, contendo as explicações
museológicas das salas, li uma história instigante. Um sábio chegou do oriente
carregando seus 40 rolos de manuscritos, uma extravagância para a época. Ao desembarcar
doou todo o acervo para Veneza. Em retribuição foi acolhido como cidadão pela
Sereníssima Republica. Esta contribuição compõe um dos núcleos originais da
vasta coleção de manuscritos e livros antigos que a instituição guarda.
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Sai com uma questão enroscada nos meus neurônios: quantos e quais livros são essenciais na cultura
mundial?
Uma pergunta difícil de responder, porque escrever
é como fazer uma contribuição pessoal para a memória coletiva, para a 'Biblioteca Marciana' da humanidade. E a memória humana é
cumulativa – nunca seletiva. Guarda tudo, não classifica, nem por valor, nem por
importância. Preserva, com o mesmo zelo, o essencial e o irrelevante. Manifestações culturais são incomparáveis.
Entretanto, ainda não dá para saber direito o que
vai acontecer com a enxurrada de publicações que desaguam na (e inundam a) Internet, como 'l'acqua alta'. Serão preservadas como as obras em papel? Terão a mesma longevidade?
Ou somente legiões de robôs imortais 'susancalvinianos' se debruçarão, por alguns nano segundos, para ler as
páginas em código binário das veleidades e divagações humanas?
Isaac Azimov aplaudiria.
ResponderExcluirFernando Marchini
ResponderExcluirDurante minha extensa carreira de executivo de Informática, como José Mindlin, sempre tinha um livro na pasta, se acabava, passava numa livraria. Asimov era fácil de encontrar, li tudo dele.
TB li tudo de Asimov. " A violência é o último recurso da incompetência". Os livros nunca morrerão. Não importa quantos e-books em quantos nanosegundos os robôts (da vida e de Westworld) devorarão. Os livros continuarão encantando os que nascem leitores, em papiros, papel, em projeções virtuais que possamos manusear, virando páginas e sentindo aquele cheirinho de livro novo, cola, tinta, verniz na capa... e os DOuglas Bock continuarão também encantando os encantados leitores natos.
ResponderExcluir"..a imensidade de livros se desfazendo, quase se liquefazendo e escorrendo para ...[]... a Internet, como 'l'acqua alta'."
ResponderExcluirEspero que não se ofenda pela citação editada acima, mas achei que seria a resposta à sua pergunta sobre o futuro.
Obrigado pelo comentário Saulo.
ResponderExcluirPara os livros papel é o futuro mais previsível. Quando aos e-books, ainda é impossível dizer o que serão e como envelhecerão.
Isso é tambem o que tenho pensado a respeito das imagens dos meus trabalhos,que publico na internet.Mas,realmente,o que me interessa,eh o aqui e agora.O futuro,como sera???(Ida Zami).
ExcluirEstamos vivendo um tempo de mudanças Ida Guttenberg
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ResponderExcluirLETÍCIA MARIA DE MELLO - Que texto incrível
transcrito do Facebook
ResponderExcluirTANIA J LUIZ - Acho que ficaria deprimida se entrasse nesse sebo GatoViajante... Por via das dúvidas ficarei longe desse endereço quando voltar a Veneza. Adorei o texto, como sempre
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ResponderExcluirLaudelina NL – A descrição da livraria é uma peça literária, tal é a beleza do escrito! Parabéns a quem o fez!!!
Transcrito do Facebook
ResponderExcluirLaudelina NL – Primeiro, agradeço a presteza na resposta!
Segundo, novamente meus parabéns, Douglas Bock!
Teu texto não fica devendo nada ao estilo dos maiores escritores!
Sou franca admiradora de quem tiver essa desenvoltura na escrita!
Um ótimo domingo!