sexta-feira, 3 de outubro de 2014

Veneza, Livros, Sebos, Bibliotecas, E-Books, Bits...


Entrei num sebo em Veneza, perto da Igreja de Santa Maria Formosa – uma região de antiquários. A loja era estranha e intrigante, meio navegante, meio delirante, como os contos de Borges. Uma sequência de 20 – ou infinitas – salas e cubículos mal iluminados, com janelas e portas altas e baixas, pequenas e grandes que se abriam para um canal estreito e ensombrado, apesar do sol brilhante.

Os livros – muitos milhares – estavam dispostos em pilhas úmidas que brotavam diretamente do chão, de ladrilhos multi centenários ou calçamentos rudes e ásperos. Formavam paredes, evocavam labirintos, provocavam assombros. Uma pequena parte, sobretudo os Livros de Arte, estavam viajando, expostos em velhas gondolas, barcos, banheiras, carinhos de jardinagem e outras esquisitices espalhadas pelos corredores ou dependuradas nas paredes, como estantes improvisadas.

Havia indicações de seções e setores – de um humor arrevesado – sinalizando cantos escuros e quartos abarrotados: ‘livros para garotos que não conhecem o medo’; ‘policiais americanos de autores suspeitos’; ‘receitas para donnas audazes’, ‘cinema dos tempos bons’. Mais que letreiros, lembravam propostas indecentes, chamadas do flautista de Hamelim, ou propagandas de Literatura Weird.

Arrisquei ‘cinema dos tempos bons’. Era tentador, centenas de coloridos e expressivos cartazes de todos os velhos filmes italianos clássicos: Rocco e i suoi fratelli’, ‘Vaghe stelle dell'orsa’, Il gatto a nove code’, ‘Anonimo Veneziano’ e muitos outros que nunca tinha visto ou ouvido falar. Me arrependi de não ter trazido todos.

De repente, caminhando por aquele sebo anfíbio veneziano, por aquela infinidade de colunas de alfarrábios e estantes replicadas, constatei apreensivo a imensidade de livros se desfazendo, quase se liquefazendo e escorrendo para o canal. Como se fossem letrados musgos esverdeados de Lovecraft. Comecei a pensar na compulsão de escrever; e, um pouco, na veleidade de publicar.

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Dois dias depois fui visitar a Biblioteca Marciana (Biblioteca Nazionale Marciana), talvez, a mais antiga biblioteca pública do mundo moderno, localizada num dos Palácios da Praça São Marcos, à beira do Grande Canal.

Num dos folhetos, contendo as explicações museológicas das salas, li uma história instigante. Um sábio chegou do oriente carregando seus 40 rolos de manuscritos, uma extravagância para a época. Ao desembarcar doou todo o acervo para Veneza. Em retribuição foi acolhido como cidadão pela Sereníssima Republica. Esta contribuição compõe um dos núcleos originais da vasta coleção de manuscritos e livros antigos que a instituição guarda.

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Sai com uma questão enroscada nos meus neurônios: quantos e quais livros são essenciais na cultura mundial?

Uma pergunta difícil de responder, porque escrever é como fazer uma contribuição pessoal para a memória coletiva, para a 'Biblioteca Marciana' da humanidade. E a memória humana é cumulativa  nunca seletiva. Guarda tudo, não classifica, nem por valor, nem por importância. Preserva, com o mesmo zelo, o essencial e o irrelevante.  Manifestações culturais são incomparáveis.

Entretanto, ainda não dá para saber direito o que vai acontecer com a enxurrada de publicações que desaguam na (e inundam a) Internet, como 'l'acqua alta'. Serão preservadas como as obras em papel? Terão a mesma longevidade?

Ou somente legiões de robôs imortais 'susancalvinianos' se debruçarão, por alguns nanossegundos, para ler as páginas em código binário das veleidades e divagações humanas?

11 comentários:

  1. Fernando Marchini
    Durante minha extensa carreira de executivo de Informática, como José Mindlin, sempre tinha um livro na pasta, se acabava, passava numa livraria. Asimov era fácil de encontrar, li tudo dele.

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  2. TB li tudo de Asimov. " A violência é o último recurso da incompetência". Os livros nunca morrerão. Não importa quantos e-books em quantos nanosegundos os robôts (da vida e de Westworld) devorarão. Os livros continuarão encantando os que nascem leitores, em papiros, papel, em projeções virtuais que possamos manusear, virando páginas e sentindo aquele cheirinho de livro novo, cola, tinta, verniz na capa... e os DOuglas Bock continuarão também encantando os encantados leitores natos.

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  3. "..a imensidade de livros se desfazendo, quase se liquefazendo e escorrendo para ...[]... a Internet, como 'l'acqua alta'."

    Espero que não se ofenda pela citação editada acima, mas achei que seria a resposta à sua pergunta sobre o futuro.

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  4. Obrigado pelo comentário Saulo.
    Para os livros papel é o futuro mais previsível. Quando aos e-books, ainda é impossível dizer o que serão e como envelhecerão.

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    1. Isso é tambem o que tenho pensado a respeito das imagens dos meus trabalhos,que publico na internet.Mas,realmente,o que me interessa,eh o aqui e agora.O futuro,como sera???(Ida Zami).

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    2. Estamos vivendo um tempo de mudanças Ida Guttenberg

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  5. Transcrito do Facebook
    LETÍCIA MARIA DE MELLO - Que texto incrível

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  6. transcrito do Facebook
    TANIA J LUIZ - Acho que ficaria deprimida se entrasse nesse sebo GatoViajante... Por via das dúvidas ficarei longe desse endereço quando voltar a Veneza. Adorei o texto, como sempre

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  7. Transcrito do Facebbok
    Laudelina NL – A descrição da livraria é uma peça literária, tal é a beleza do escrito! Parabéns a quem o fez!!!

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  8. Transcrito do Facebook
    Laudelina NL – Primeiro, agradeço a presteza na resposta!
    Segundo, novamente meus parabéns, Douglas Bock!
    Teu texto não fica devendo nada ao estilo dos maiores escritores!
    Sou franca admiradora de quem tiver essa desenvoltura na escrita!
    Um ótimo domingo!

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