quarta-feira, 26 de junho de 2013

LEDA E OS CISNES (Chorar resolve)

Os casamentos, como os cisnes, assediavam Leda desde garota. Com 37 anos colecionava matrimônios, filhos e ex-maridos, três de cada. Alguns sábados seu prédio parecia escola de meninos, os pais se aglomeravam no portão para pegar os filhos, às vezes levavam os meio-irmãos para programas comuns, acabaram ficando amigos. Conversavam sobre a ex-companheira com carinho, contudo, os diálogos eram surreais, falavam de mulheres diferentes.

Leda era cambiante, nunca se preocupava com casamentos, porém eles teimavam em sitiá-la. Sua vida era dividida em ciclos, cada seis anos mudava tudo e se reinventava inteira. Já havia sobrevivido a três metamorfoses: como rockeira, como universitária e como empresária. Em cada saga passava por uma transformação profunda, trocava de aparência, de amigos, de vocabulário e de objetivos. Quando terminava, acrescentava um filho e um ex-marido ao conjunto de astros de sua constelação e seguia em frente.

Os ciclos obedeciam leis e regras esotéricas. Principiavam com uma longa incubação, Leda se recolhia e evitava compromissos e decisões. Divagava, procurando alguma coisa impressentida suspensa no ar. Inopinadamente acelerava e entrava numa agitação urgente e dirigida. De fora tudo parecia aleatório e impensado, todavia, ela sabia exatamente para onde caminhava e o que queria. Então uma etapa diferente era inaugurada.


É importante evitar conclusões erradas: nenhum varão compelia a moça para o novo rumo; Leda seguia seu próprio itinerário. Mergulhava na nova experiência como se nunca tivesse desejado outra coisa na vida, somente durante o trajeto é que escolhia seu companheiro de viagem. Em algum momento, misteriosamente, como havia iniciado, a aventura terminava. O destino se cumpria, o fruto nascia, crescia, sazonava e caía, deixando uma semente.


O Ciclo do Rock se anunciou quando Leda tinha 17 anos. Ao concluir o colegial decidiu não fazer faculdade, passou o ano ociosa, lendo, ouvindo música e assistindo filmes; zanzando, viajando e namorando. A avó, D. Telma, a parenta mais próxima depois da morte dos pais, era conivente, achava a neta criança demais.

No ano seguinte também não prestou vestibular, porém voltou a estudar inglês e comunicou que ia morar em Londres. Tinha 18 anos e uma boa herança, podia fazer o que quisesse. Matriculou-se num curso de Baixo e levava a sério o instrumento, tanto que foi convidada para integrar uma sofisticada banda feminina, a Lazy Ladies. Tocavam num bar perto de Covent Garden e Leda começou a prestar atenção no conjunto seguinte, achava o som legal e o guitarrista bonitão. Ronaldo, de Minas, sete anos batalhando pelo rock. Arrumaram um jeito de morar juntos. Engravidar e voltar ao Brasil foram consequências semi-consensuais.

Montaram uma banda neo-romântica em SP, Leda, mesmo gravida e estufada, subiu no palco até o oitavo mês. O volume da barriga atrapalhava o Baixo, mas a figura em cena era bonita. Depois do parto participava pouco, apenas tietava e cuidava do filho George. A carreira de Ronaldo esquentou. Na contramão, o interesse de Leda pelo rock (e marido) arrefeceu. O grupo promoveu uma longa turnê latino-americana, a mãe decidiu encerrar a carreira e o casamento, retornou para a casa da avó.


D. Telma, constatando a separação irreversível, reformou a casa para acomodar melhor neta e bisneto. O Ciclo Universitário surgiu naturalmente, discreto e despercebido, como a retomada natural da vida estudantil da garota. Leda havia feito Computação no colegial e resolveu permanecer na área. Como sempre, cheia de empolgação, acompanhava com dedicação todas as matérias. Audaciosamente, no meio da graduação, apresentou um trabalho sobre a interação homem máquina num congresso. Os cabelos ambíguos – cor de mel e de labaredas  e os olhos verdes-mar, mais a qualidade técnica da participação, chamaram atenção de Fernando, um professor dez anos mais velho.

O mestre brincava com sua paixão, ainda platônica, tratava-se de uma aluna, precisava tomar cuidado, todavia resolveu armar uma arapuca e esperar. Anunciou uma série de palestras relacionando os cinco sentidos humanos e o computador. Leda se inscreveu. Fernando deu as melhores aulas de sua vida docente. Foi difícil disfarçar que as exposições eram apenas para cativar a estudante ruiva. Sete meses depois do término das palestras anunciaram o casamento. Francisco nasceu pouco depois.

Leda bateu recordes acadêmicos, com o apoio de D. Telma, apesar da gravidez, conseguiu terminar a graduação e o mestrado no menor tempo possível. Era esforçada e determinada, nos últimos anos ajudava Fernando nos artigos científicos, assinaram vários deles juntos. O casal funcionava bem e provocava inveja. Por isso, foi com perverso prazer que uma professora amiga alertou que Fernando reclamava da dedicação excessiva da esposa aos estudos; e que estava tendo um caso com a secretária da escola. Leda não disse nada, nem confrontou, apenas voltou para a casa da avó com os dois filhos.


O Ciclo Empresarial tem data e local de inicio precisos: Maresias, durante o exílio da família, depois do fim do mestrado. Quando D. Telma começou a ficar desassossegada por causa da pasmaceira e da ausência de desafios, o acaso atuou e tudo mudou. Correndo pela praia Leda encontrou Ângela, uma amiga do colegial, agora executiva de banco. Passaram a jantar juntas e varar madrugadas conversando e tomando licor de pera. Quando as férias da amiga terminaram todo mundo voltou para casa.

Leda arrumou um MBA, queria aprender a terminologia empresarial e fazer contatos. Seis meses depois ela e Ângela abriram uma empresa especializada em reconhecimento de padrões nos dados armazenados. O sucesso veio rápido e as amigas perceberam que tinham dificuldades comerciais, precisavam de ajuda. Pensaram numa mulher, porém concluíram que um homem equilibraria melhor os negócios. Paulo César, apresentando por Ângela, foi o escolhido. O trio deu certo, a empresa se expandia e exigia viagens constantes de Leda e PC para vender os serviços. A sócia adivinhou o envolvimento, ficou contente quanto partiram para a lua-de-mel nas margens do Reno.

Compraram um apartamento perto da avó e Leda cuidava da gravidez e amamentação na própria empresa, improvisando um quarto-berçário. Foi uma época feliz, tinham muito serviço, mas se divertiam trabalhando juntos. De repente D. Telma, feito uma camélia, caiu do galho, deu dois suspiros e depois morreu. Pela escala dos sentimentos, a neta teve um abalo sísmico grau mil. Abandonou empresa e marido, convocou uma tia-avó para ajudar e se enfurnou na velha casa. PC esperou seis meses, nenhuma mudança. A convivência era impossível e artificial. Colocou o apartamento à venda e mudou para um flat.


Quando as saudades da avó adormeceram e os garotos retomaram a rotina, o excesso de tempo livre virou aborrecimento. Leda foi assaltada pela periódica vontade de mudar. Se auto-avaliou: 37 anos, saudável e bonita, quando passeava os homens ainda se viravam para olhar. O que faria nos próximos anos? Porteira dos ex-maridos? Olhando postais se lembrou de Tricia, uma amiga de Londres que agora vivia no Texas, deu vontade de viajar para se reorientar. Não uma viagem qualquer, havia assistido Intriga Internacional de Hitchcock e queria dormir numa cabine de trem, quem sabe ser acordada por um estranho no meio da noite. Montou um roteiro esdrúxulo, centrado no expresso Chicago-San Antonio, que corta os Estado Unidos verticalmente. Reservou uma cabine dupla no Texas Eagle para uma viagem de 20 horas, desceria em Austin, a cidade de Tricia.

Estava feliz, pronta para tudo, aproveitou cada minuto no trem: a amplidão dos horizontes do meio-oeste; a conversa com os passageiros; no vagão restaurante bebeu uma garrafa inteira de vinho do Oregon; porém ninguém se aproximou. Onze da noite voltou para a cabine sonolenta, deitou apreciando a paisagem enluarada. Adormeceu com a porta semi aberta.

Despertou alarmada e olhou o relógio: 7:45, ficou assustada, pelo horário havia passado de Austin. Desnorteada e aflita se precipitou num choro convulsivo e desenfreado. O cabineiro veio ajudar e a conversa atraiu um texano imenso. Don´t cry, baby, I can help you. A voz de baixo-profundo se sobrepôs à cascata de soluços. Leda parou imediatamente de chorar. Capturei um estranho.

Jon era um cowboy de Hollywood, maciço, inabalável e imperturbável. Morava em San Marcos, vizinha de Austin, e conhecia o marido de Tricia. Além disso, era dono de uma empresa de equipamentos agrícolas, tinha uma família imensa e era ativo participante da comunidade. Mais importante, 45 anos e solteiro. Leda viveu um mês adolescente, com um namorado apaixonado, dedicado e meio tímido, cheio de atenções e mesuras; com uma amiga para fazer fofocas; e com um novo mundo para conhecer e desbravar. No jantar de despedida Jon perguntou se poderia visita-la no Brasil, queria oferecer o anel de noivado como garantia. Por via das dúvidas Leda havia passado creme nas mãos, porém foi comedida, respondeu que seria um prazer recebe-lo, contudo só poderia aceitar a joia depois que ele conhecesse e aprovasse seus filhos.

Dois meses depois Jon desembarcou. Conheceu os filhos, os parentes, os amigos e os ex-maridos – o pacote inteiro – ainda assim insistia em casar. Ninguém entendia muito bem as coisas, o tamanho da mudança, cada um tinha uma opinião, um palpite, um conselho. Falaram de precipitação, de audácia, de loucura, das dificuldades futuras; entretanto, nada tinham contra Jon, ele era perfeito.

Perto da partida Leda marcou um jantar num restaurante fechado para receber os amigos e parentes. Uma espécie de noivado. Jon fez o pedido formal, ajoelhado e com o anel na mão. Leda respondeu sim, com um duvida bailarina na cabeça.

O que viria pela frente? Um Ciclo Americano ou um final feliz?


3 comentários:

  1. Um comentário de Evana Clicia:
    "Oi, Douglas.

    Gostei muito do seu conto. Sua Leda é uma mulher que pega o que a vida lhe apresenta sem fazer drama.

    Abç"

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  2. Eu sou a Ida Zami,q escreveu o comentário anterior.Parabéns. ABS.

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  3. Obrigado Ida Guttemberg, na verdade existiu uma versão 'rascunho' de Leda, que trabalhou comigo algum tempo.

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