Os
casamentos, como os cisnes, assediavam Leda desde garota. Com 37 anos colecionava
matrimônios, filhos e ex-maridos, três de cada. Alguns sábados seu prédio
parecia escola de meninos, os pais se aglomeravam no portão para pegar os
filhos, às vezes levavam os meio-irmãos para programas comuns, acabaram ficando
amigos. Conversavam sobre a ex-companheira com carinho, contudo, os diálogos eram
surreais, falavam de mulheres diferentes.
Leda
era cambiante, nunca se preocupava com casamentos, porém eles teimavam em sitiá-la. Sua vida era dividida em ciclos, cada seis anos mudava tudo e
se reinventava inteira. Já havia sobrevivido a três metamorfoses: como rockeira, como universitária e como empresária. Em cada saga passava por uma transformação profunda, trocava de
aparência, de amigos, de vocabulário e de objetivos. Quando terminava,
acrescentava um filho e um ex-marido ao conjunto de astros de sua constelação e
seguia em frente.
Os ciclos obedeciam leis e regras esotéricas. Principiavam com uma longa incubação,
Leda se recolhia e evitava compromissos e decisões. Divagava, procurando alguma
coisa impressentida suspensa no ar. Inopinadamente acelerava e entrava numa agitação
urgente e dirigida. De fora tudo parecia aleatório e impensado, todavia, ela sabia
exatamente para onde caminhava e o que queria. Então uma etapa diferente era
inaugurada.
É
importante evitar conclusões erradas: nenhum varão compelia a moça para o novo rumo;
Leda seguia seu próprio itinerário. Mergulhava na nova experiência como se nunca
tivesse desejado outra coisa na vida, somente durante o trajeto é que escolhia seu
companheiro de viagem. Em algum momento, misteriosamente, como havia iniciado, a
aventura terminava. O destino se cumpria, o fruto nascia, crescia, sazonava e caía,
deixando uma semente.
O
Ciclo do Rock se anunciou quando Leda tinha 17 anos. Ao concluir o colegial decidiu
não fazer faculdade, passou o ano ociosa, lendo, ouvindo música e assistindo
filmes; zanzando, viajando e namorando. A avó, D. Telma, a parenta mais próxima
depois da morte dos pais, era conivente, achava a neta criança demais.
No
ano seguinte também não prestou vestibular, porém voltou a estudar inglês e
comunicou que ia morar em Londres. Tinha 18 anos e uma boa herança, podia fazer
o que quisesse. Matriculou-se num curso de Baixo e levava a sério o instrumento,
tanto que foi convidada para integrar uma sofisticada banda feminina, a Lazy Ladies. Tocavam num bar perto de Covent
Garden e Leda começou a prestar atenção no conjunto seguinte, achava o som
legal e o guitarrista bonitão. Ronaldo, de Minas, sete anos batalhando pelo rock.
Arrumaram um jeito de morar juntos. Engravidar e voltar ao Brasil foram consequências
semi-consensuais.
Montaram
uma banda neo-romântica em SP, Leda, mesmo gravida e estufada, subiu no palco
até o oitavo mês. O volume da barriga atrapalhava o Baixo, mas a figura em cena
era bonita. Depois do parto participava pouco, apenas tietava e cuidava do
filho George. A carreira de Ronaldo esquentou. Na contramão, o interesse de
Leda pelo rock (e marido) arrefeceu. O grupo promoveu uma longa turnê latino-americana,
a mãe decidiu encerrar a carreira e o casamento, retornou para a casa da avó.
D.
Telma, constatando a separação irreversível, reformou a casa para acomodar
melhor neta e bisneto. O Ciclo Universitário surgiu naturalmente, discreto e
despercebido, como a retomada natural da vida estudantil da garota. Leda havia
feito Computação no colegial e resolveu permanecer na área. Como sempre, cheia
de empolgação, acompanhava com dedicação todas as matérias. Audaciosamente, no
meio da graduação, apresentou um trabalho sobre a interação homem máquina num
congresso. Os cabelos ambíguos – cor de mel e de labaredas – e os olhos verdes-mar,
mais a qualidade técnica da participação, chamaram atenção de Fernando, um
professor dez anos mais velho.
O
mestre brincava com sua paixão, ainda platônica, tratava-se de uma aluna, precisava
tomar cuidado, todavia resolveu armar uma arapuca e esperar. Anunciou uma série
de palestras relacionando os cinco sentidos humanos e o computador. Leda se
inscreveu. Fernando deu as melhores aulas de sua vida docente. Foi difícil
disfarçar que as exposições eram apenas para cativar a estudante ruiva. Sete
meses depois do término das palestras anunciaram o casamento. Francisco nasceu
pouco depois.
Leda
bateu recordes acadêmicos, com o apoio de D. Telma, apesar da gravidez, conseguiu
terminar a graduação e o mestrado no menor tempo possível. Era esforçada e
determinada, nos últimos anos ajudava Fernando nos artigos científicos,
assinaram vários deles juntos. O casal funcionava bem e provocava inveja. Por
isso, foi com perverso prazer que uma professora amiga alertou que Fernando
reclamava da dedicação excessiva da esposa aos estudos; e que estava tendo um
caso com a secretária da escola. Leda não disse nada, nem confrontou, apenas
voltou para a casa da avó com os dois filhos.
O
Ciclo Empresarial tem data e local de inicio precisos: Maresias, durante o exílio da família,
depois do fim do mestrado. Quando D. Telma começou a ficar desassossegada
por causa da pasmaceira e da ausência de desafios, o acaso atuou e tudo mudou. Correndo pela praia Leda encontrou Ângela, uma amiga do colegial, agora
executiva de banco. Passaram a jantar juntas e varar madrugadas conversando e tomando
licor de pera. Quando as férias da amiga terminaram todo mundo voltou para
casa.
Leda
arrumou um MBA, queria aprender a terminologia empresarial e fazer contatos. Seis
meses depois ela e Ângela abriram uma empresa especializada em reconhecimento de padrões nos dados armazenados. O sucesso veio rápido e as amigas perceberam que
tinham dificuldades comerciais, precisavam de ajuda. Pensaram numa mulher, porém
concluíram que um homem equilibraria melhor os negócios. Paulo César, apresentando
por Ângela, foi o escolhido. O trio deu certo, a empresa se expandia e exigia
viagens constantes de Leda e PC para vender os serviços. A sócia adivinhou o
envolvimento, ficou contente quanto partiram para a lua-de-mel nas margens do
Reno.
Compraram
um apartamento perto da avó e Leda cuidava da gravidez e amamentação na própria empresa,
improvisando um quarto-berçário. Foi uma época feliz, tinham muito serviço, mas
se divertiam trabalhando juntos. De repente D. Telma, feito uma camélia, caiu do galho, deu dois suspiros e
depois morreu. Pela escala dos sentimentos, a neta teve um abalo sísmico
grau mil. Abandonou empresa e marido, convocou uma tia-avó para ajudar e se enfurnou
na velha casa. PC esperou seis meses, nenhuma mudança. A convivência era impossível
e artificial. Colocou o apartamento à venda e mudou para um flat.
Quando
as saudades da avó adormeceram e os garotos retomaram a rotina, o excesso de
tempo livre virou aborrecimento. Leda foi assaltada pela periódica vontade de
mudar. Se auto-avaliou: 37 anos, saudável e bonita, quando passeava os homens
ainda se viravam para olhar. O que faria nos próximos anos? Porteira dos ex-maridos?
Olhando postais se lembrou de Tricia, uma amiga de Londres que agora vivia no
Texas, deu vontade de viajar para se reorientar. Não
uma viagem qualquer, havia assistido Intriga
Internacional de Hitchcock e queria dormir numa cabine de trem, quem sabe
ser acordada por um estranho no meio da noite. Montou um roteiro esdrúxulo, centrado
no expresso Chicago-San Antonio, que corta os Estado Unidos verticalmente.
Reservou uma cabine dupla no Texas Eagle
para uma viagem de 20 horas, desceria em Austin, a cidade de Tricia.
Estava
feliz, pronta para tudo, aproveitou cada minuto no trem: a amplidão dos
horizontes do meio-oeste; a conversa com os passageiros; no vagão restaurante
bebeu uma garrafa inteira de vinho do Oregon; porém ninguém se aproximou. Onze da
noite voltou para a cabine sonolenta, deitou apreciando a paisagem enluarada.
Adormeceu com a porta semi aberta.
Despertou alarmada e olhou o relógio: 7:45, ficou assustada, pelo horário havia passado de Austin. Desnorteada e aflita se precipitou num choro convulsivo e desenfreado. O cabineiro veio ajudar e a conversa atraiu um texano imenso. Don´t cry, baby, I can help you. A voz de baixo-profundo se sobrepôs à cascata de soluços. Leda parou imediatamente de chorar. Capturei um estranho.
Despertou alarmada e olhou o relógio: 7:45, ficou assustada, pelo horário havia passado de Austin. Desnorteada e aflita se precipitou num choro convulsivo e desenfreado. O cabineiro veio ajudar e a conversa atraiu um texano imenso. Don´t cry, baby, I can help you. A voz de baixo-profundo se sobrepôs à cascata de soluços. Leda parou imediatamente de chorar. Capturei um estranho.
Jon
era um cowboy de Hollywood, maciço,
inabalável e imperturbável. Morava em San Marcos, vizinha de Austin, e conhecia
o marido de Tricia. Além disso, era dono de uma empresa de equipamentos
agrícolas, tinha uma família imensa e era ativo participante da comunidade. Mais
importante, 45 anos e solteiro. Leda viveu um mês adolescente, com um namorado
apaixonado, dedicado e meio tímido, cheio de atenções e mesuras; com uma amiga
para fazer fofocas; e com um novo mundo para conhecer e desbravar. No jantar de
despedida Jon perguntou se poderia visita-la no Brasil, queria oferecer o anel de noivado como garantia. Por via
das dúvidas Leda havia passado creme nas mãos, porém foi comedida, respondeu que
seria um prazer recebe-lo, contudo só poderia aceitar a joia depois que ele
conhecesse e aprovasse seus filhos.
Dois
meses depois Jon desembarcou. Conheceu os filhos, os parentes, os amigos e os
ex-maridos – o pacote inteiro – ainda assim insistia em casar. Ninguém entendia
muito bem as coisas, o tamanho da mudança, cada um tinha uma opinião, um
palpite, um conselho. Falaram de precipitação, de audácia, de loucura, das
dificuldades futuras; entretanto, nada tinham contra Jon, ele era perfeito.
Perto
da partida Leda marcou um jantar num restaurante fechado para receber os
amigos e parentes. Uma espécie de noivado. Jon fez o pedido formal, ajoelhado e
com o anel na mão. Leda respondeu sim, com um duvida bailarina na cabeça.
O que
viria pela frente? Um Ciclo Americano ou um final feliz?
Um comentário de Evana Clicia:
ResponderExcluir"Oi, Douglas.
Gostei muito do seu conto. Sua Leda é uma mulher que pega o que a vida lhe apresenta sem fazer drama.
Abç"
Eu sou a Ida Zami,q escreveu o comentário anterior.Parabéns. ABS.
ResponderExcluirObrigado Ida Guttemberg, na verdade existiu uma versão 'rascunho' de Leda, que trabalhou comigo algum tempo.
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