Se fosse preciso estabelecer a data de nascimento da
Audiofilia, uma boa escolha seria 1894. Nesse ano, conforme a Wikipedia, a Berliner
Gramophone "started marketing records with somewhat
more substantial entertainment value, along with somewhat more substantial
gramophones to play them.” Ou seja, o disco com música gravada, visando o entretenimento,
passou a ser comercializado como item separado do player. Somente assim a Audiofilia
pôde eclodir, porque, para o nosso hobby sutil, tanto os equipamentos, quanto
as mídias, são componentes igualmente importantes.
Esta iniciativa também provocou outro desdobramento decisivo: a função ‘gravação’ deixou de ser imprescindível. As novas ‘máquinas falantes’ podiam ser somente leitoras, e os compradores
puderam se transformar apenas em ouvinte, mais ainda, em ouvintes exigentes. Em
outras palavras, viraram audiófilos.
O auge da corrida
pela invenção dos aparelhos gravadores e reprodutores aconteceu muito antes
desta data. Era um assunto quente, aconteciam diversas pesquisas e experiências
pelo mundo inteiro, paralelas e convergentes, contudo, por consenso histórico, em
1877, a vitória foi atribuída a Thomas Edison. Porque sua solução, diferente
das outras, tinha capacidade de gravar e reproduzir sons. No começo todos os fabricantes
utilizavam como suporte para gravações um cilindro coberto de estanho ou cera –
grande, pesado, frágil e difícil de manusear. Levou muito tempo para perceberem
que a ‘mídia’ poderia ser um item separado do equipamento de reprodução.
Na verdade, entre
as traquitanas que apareceram na época – phonographs,
gramophones, graphophones. talking machines, paliophones, phonautographs –
nenhuma foi concebida como tocador universal de música para divertimento. A
destinação principal delas todas era guardar registros sonoros importantes,
para fins de documentação, ou para facilitação dos negócios. Lembram-se do dictaphone, que permitia gravar ditados
para posterior datilografia?
O produto de Emile
Berliner caminhava em outra direção, foi projetado como um player separado, capaz
de tocar discos variados – mais fáceis de produzir, manusear e armazenar – e com
a proposta de oferecer divertimento musical residencial e diversificado. Para
todos os efeitos Berliner inventou o disco e a indústria fonográfica, durante
décadas, altamente lucrativa. Tanto que a Berliner
Gramophone está entranhada na origem da EMI, RCA Victor, Columbia, Deutsche Grammophon e outras etiquetas
ainda famosas. E o Grammy, o troféu mundial para melhores gravações, vem
de Gramophone, o nome fantasia
adotado pelo criador para sua criatura.
A universalização
das vitrolas e toca-discos, no começo do século XX, possibilitou reinventar a
forma clássica de apreciar música. Antes, para quem pretendesse ‘curtir um
som’, só existiam os espetáculos ao vivo, com os artistas presentes, nos
teatros, igrejas, salões ou festas. As vivências sonoras eram sempre duplas: auditivas
e visuais. Música e execução juntas; a mágica da música e a arte do artista
eram inseparáveis.
Com o
aparecimento dos discos foi preciso reprogramar completamente nosso sistema
cognitivo para apreciar a novidade. Focados apenas na audição da música, ficamos
livres para imaginar os ambientes, os instrumentos e os interpretes; para recriar
o fenômeno gravado como nos aprouvesse. A partir da mesma experiência auditiva,
cada ouvinte – agora exclusivamente ouvinte – podia agregar ao evento a
dimensão imaginária que quisesse. E a imaginação é o mais libertário,
imprevisível e incoercível dos poderes humanos.
Além do som do
disco tudo mais era imaginação. Um convite para a mitificação, idolatria e fabricações
de fãs. Contudo, a fruição do som puro, etéreo, abstrato e incorpóreo, propiciou
o refinamento de um tipo especial de sensibilidade, contribuiu para aguçar a
atenção, sobrevalorizar o detalhe e exacerbar as exigências. O som reproduzido
passou a ser um fenômeno isolado, desvinculado da apresentação, com regras e
códigos próprios. Tudo isso somado foi conformando o perfil do audiófilo.
Alguns romances e novelas registraram
e analisaram os efeitos dessa adaptação cognitiva, exatamente no momento em que
estava acontecendo. Um deles é A Montanha Mágica (Der Zauberberg), de Thomas Mann, publicado
em 1924 (VER>>> 'FURO' - 1913, A PRIMEIRA REUNIÃO AUDIÓFILA). Relata o espanto de um grupo de pessoas quando percebem que podem ouvir
música de qualidade sem que os artistas estejam presentes, à hora que quiserem
e quantas vezes desejarem. Outro livro é Contraponto
(Point Counter Point) de Aldous Huxley, de 1928, que termina com um dos personagens centrais
cometendo suicídio, enquanto ouve na vitrola, seguidamente, a Lydian Song, o terceiro movimento do Quarteto de Cordas N. 15, de Beethoven.
***** ***** *****
Todavia,
alguns audiófilos mais exigentes talvez queiram escolher outra data de
nascimento para o hobby. Quem sabe o momento em que Thomas Edison começou a
consolidar o conceito de ‘fidelidade à música ao vivo’, um tema central
e crucial para a Audiofilia. Neste caso, como candidato, temos um evento
preciso, com dia, mês e ano: 10/06/1911, Fifth
Annual Convention for the National Association of Talking Machine Jobbers, em Milwaukee, quando foram anunciados os espetaculosos
Discos Edison.
A Primeira Grande Guerra Audiófila contrapôs os cilindros e os discos. A opinião prevalecente garante que apenas os melhores discos alcançavam a qualidade média dos cilindros. Entretanto, apesar da pior qualidade, os discos triunfaram, porque eram mais amigáveis para produzir em massa, distribuir, manusear, armazenar e colecionar. Diferente dos cilindros, tinham dois lados e uma conveniente etiqueta de cada lado para divulgar a nome da gravadora e a dados da música. Além da capa, que, com o tempo, foi brilhantemente explorada.
Edison
permaneceu fiel aos cilindros, contudo, em 1911, teve que se render aos discos.
Entrou no mercado prepotente, lançou uma nova matéria prima para as bolachas,
uma nova agulha de ponta de diamante e um novo método de leitura (vertical motion). Por causa desses
avanços acabou isolando-se. Discos Edison somente para aparelhos Edison, e vice
versa. Igual a briga entre a Apple e a Microsoft.
Agradecimento: Holbeim Menezes |
Quando
Edison entrou na briga perdia feio em quantidade, então jogou todas suas fichas
na qualidade. Como os cientistas atestavam sua superioridade técnica, se
apropriou da ideia de ‘fidelidade á música ao vivo’. Em suas campanhas
de marketing enfatizava a excelência de suas gravações, declarando que somente
elas asseguram a completa fidelidade sonora, que no sistema Edison era impossível
distinguir a apresentação ao vivo do evento gravado.
Promovia recitais alternando apresentações de artistas e audições de suas próprias gravações para provar a perfeição de seus discos. A partir de 1915 instituiu, com amplo sucesso, os ‘Tone Tests’, espetáculos em que um cantor e um sistema Edison eram apresentados num palco escuro, desafiando a plateia a distinguir entre o artista e o equipamento. No auge da campanha produziu o filme The Voice of the Violin, um ‘Tone Test’ com a virtuose Anna Case que correu o mundo inteiro deslumbrando espectadores. Por algum tempo, acintosamente, usava nas etiquetas do seus discos 'Edison Re-Creation' para propagar, distinguir e valorizar seu produto.
Edson não ganhou a guerra, mas até hoje os ‘tone tests’, os testes
cegos, são excrecências que ainda incomodam e desafiam os audiófilos.
1925 - 'OVERDUBBING' - FIM DA FIDELIDADE NAS GRAVAÇÕES
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