sexta-feira, 14 de junho de 2013

1894 - O ANO EM QUE A AUDIOFILIA NASCEU...

Se fosse preciso estabelecer a data de nascimento da Audiofilia, uma boa escolha seria 1894. Nesse ano, conforme a Wikipedia, a Berliner Gramophone "started marketing records with somewhat more substantial entertainment value, along with somewhat more substantial gramophones to play them.” Ou seja, o disco com música gravada, visando o entretenimento, passou a ser comercializado como item separado do player. Somente assim a Audiofilia pôde eclodir, porque, para o nosso hobby sutil, tanto os equipamentos, quanto as mídias, são componentes igualmente importantes.

Esta iniciativa também provocou outro desdobramento decisivo: a função ‘gravação’ deixou de ser imprescindível.  As novas ‘máquinas falantes’ podiam ser somente leitoras, e os compradores puderam se transformar apenas em ouvinte, mais ainda, em ouvintes exigentes. Em outras palavras, viraram audiófilos.

O auge da corrida pela invenção dos aparelhos gravadores e reprodutores aconteceu muito antes desta data. Era um assunto quente, aconteciam diversas pesquisas e experiências pelo mundo inteiro, paralelas e convergentes, contudo, por consenso histórico, em 1877, a vitória foi atribuída a Thomas Edison. Porque sua solução, diferente das outras, tinha capacidade de gravar e reproduzir sons. No começo todos os fabricantes utilizavam como suporte para gravações um cilindro coberto de estanho ou cera – grande, pesado, frágil e difícil de manusear. Levou muito tempo para perceberem que a ‘mídia’ poderia ser um item separado do equipamento de reprodução.

Na verdade, entre as traquitanas que apareceram na época – phonographs, gramophones, graphophones. talking machines, paliophones, phonautographs – nenhuma foi concebida como tocador universal de música para divertimento. A destinação principal delas todas era guardar registros sonoros importantes, para fins de documentação, ou para facilitação dos negócios. Lembram-se do dictaphone, que permitia gravar ditados para posterior datilografia?

O produto de Emile Berliner caminhava em outra direção, foi projetado como um player separado, capaz de tocar discos variados – mais fáceis de produzir, manusear e armazenar – e com a proposta de oferecer divertimento musical residencial e diversificado. Para todos os efeitos Berliner inventou o disco e a indústria fonográfica, durante décadas, altamente lucrativa. Tanto que a Berliner Gramophone está entranhada na origem da EMI, RCA Victor, Columbia, Deutsche Grammophon e outras etiquetas ainda famosas. E o Grammy, o troféu mundial para melhores gravações, vem de Gramophone, o nome fantasia adotado pelo criador para sua criatura.


A universalização das vitrolas e toca-discos, no começo do século XX, possibilitou reinventar a forma clássica de apreciar música. Antes, para quem pretendesse ‘curtir um som’, só existiam os espetáculos ao vivo, com os artistas presentes, nos teatros, igrejas, salões ou festas. As vivências sonoras eram sempre duplas: auditivas e visuais. Música e execução juntas; a mágica da música e a arte do artista eram inseparáveis.

Com o aparecimento dos discos foi preciso reprogramar completamente nosso sistema cognitivo para apreciar a novidade. Focados apenas na audição da música, ficamos livres para imaginar os ambientes, os instrumentos e os interpretes; para recriar o fenômeno gravado como nos aprouvesse. A partir da mesma experiência auditiva, cada ouvinte – agora exclusivamente ouvinte – podia agregar ao evento a dimensão imaginária que quisesse. E a imaginação é o mais libertário, imprevisível e incoercível dos poderes humanos.

Além do som do disco tudo mais era imaginação. Um convite para a mitificação, idolatria e fabricações de fãs. Contudo, a fruição do som puro, etéreo, abstrato e incorpóreo, propiciou o refinamento de um tipo especial de sensibilidade, contribuiu para aguçar a atenção, sobrevalorizar o detalhe e exacerbar as exigências. O som reproduzido passou a ser um fenômeno isolado, desvinculado da apresentação, com regras e códigos próprios. Tudo isso somado foi conformando o perfil do audiófilo.

Alguns romances e novelas registraram e analisaram os efeitos dessa adaptação cognitiva, exatamente no momento em que estava acontecendo. Um deles é A Montanha Mágica (Der Zauberberg), de Thomas Mann, publicado em 1924 (VER>>> 'FURO' - 1913, A PRIMEIRA REUNIÃO AUDIÓFILA)Relata o espanto de um grupo de pessoas quando percebem que podem ouvir música de qualidade sem que os artistas estejam presentes, à hora que quiserem e quantas vezes desejarem. Outro livro é Contraponto (Point Counter Point) de Aldous Huxley, de 1928, que termina com um dos personagens centrais cometendo suicídio, enquanto ouve na vitrola, seguidamente, a Lydian Song, o terceiro movimento do Quarteto de Cordas N. 15, de Beethoven.


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Todavia, alguns audiófilos mais exigentes talvez queiram escolher outra data de nascimento para o hobby. Quem sabe o momento em que Thomas Edison começou a consolidar o conceito de ‘fidelidade à música ao vivo’, um tema central e crucial para a Audiofilia. Neste caso, como candidato, temos um evento preciso, com dia, mês e ano: 10/06/1911, Fifth Annual Convention for the National Association of Talking Machine Jobbers, em Milwaukee, quando foram anunciados os espetaculosos Discos Edison.


A Primeira Grande Guerra Audiófila contrapôs os cilindros e os discos. A opinião prevalecente garante que apenas os melhores discos alcançavam a qualidade média dos cilindros. Entretanto, apesar da pior qualidade, os discos triunfaram, porque eram mais amigáveis para produzir em massa, distribuir, manusear, armazenar e colecionar. Diferente dos cilindros, tinham dois lados e uma conveniente etiqueta de cada lado para divulgar a nome da gravadora e a dados da música. Além da capa, que, com o tempo, foi brilhantemente explorada.

Edison permaneceu fiel aos cilindros, contudo, em 1911, teve que se render aos discos. Entrou no mercado prepotente, lançou uma nova matéria prima para as bolachas, uma nova agulha de ponta de diamante e um novo método de leitura (vertical motion). Por causa desses avanços acabou isolando-se. Discos Edison somente para aparelhos Edison, e vice versa. Igual a briga entre a Apple e a Microsoft.

Agradecimento: Holbeim Menezes 
Fidelidade à música ao vivo’ era o alvo e o desejo de todos os fabricantes. E, como a publicidade trabalha os desejos como se fossem realidades, os ‘reclames’ declaravam que esse alvo já fora alcançado. Num anuncio de 1908 a Victor Machine Talking Company (que havia encampado a Berliner Gramophone) pergunta: “Which is which?” Desafiando o ouvinte a distinguir entre o cantor da ópera e o sistema Victor de som (disco + gramophone). Considerado os sistemas atuas, ou era temeridade ingênua, ou propaganda enganosa.

Quando Edison entrou na briga perdia feio em quantidade, então jogou todas suas fichas na qualidade. Como os cientistas atestavam sua superioridade técnica, se apropriou da ideia de ‘fidelidade á música ao vivo’. Em suas campanhas de marketing enfatizava a excelência de suas gravações, declarando que somente elas asseguram a completa fidelidade sonora, que no sistema Edison era impossível distinguir a apresentação ao vivo do evento gravado.

Promovia recitais alternando apresentações de artistas e audições de suas próprias gravações para provar a perfeição de seus discos. A partir de 1915 instituiu, com amplo sucesso, os ‘Tone Tests’, espetáculos em que um cantor e um sistema Edison eram apresentados num palco escuro, desafiando a plateia a distinguir entre o artista e o equipamento. No auge da campanha produziu o filme The Voice of the Violin, um ‘Tone Test’ com a virtuose Anna Case que correu o mundo inteiro deslumbrando espectadores. Por algum tempo, acintosamente, usava nas etiquetas do seus discos 'Edison Re-Creation' para propagar, distinguir e valorizar seu produto.     

Edson não ganhou a guerra, mas até hoje os ‘tone tests’, os testes cegos, são excrecências que ainda incomodam e desafiam os audiófilos. 


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