quarta-feira, 6 de janeiro de 2016

Carta de um Soldado de 32


O Sr. Antonio, de Cristais Paulista, viveu bravamente 95 anos – de 1912 até 2007. Acompanhou os trepidantes acontecimentos da História de S. Paulo por todo o século passado, sempre do ponto de vista de um morador do interior do Estado, das regiões em torno de Franca e Barretos. 

Viveu uma vida longa, rica e produtiva. Teve um casamento que durou 72 anos, seis filhos que obtiveram grau universitário e dezenas de netos e bisnetos. Uma exemplar trajetória paulista. Foram homens como este que fizeram do Estado de S. Paulo a 'locomotiva do Brasil', como já disse algum poeta.  

Entretanto, talvez o ponto culminante de sua existência, a prova de fogo mais marcante que enfrentou, durou pouco. Aconteceu nos seus 20 anos, quando – durante alguns meses – participou da Revolução Constitucionalista de 32. Primeiro aquartelado em Bauru, depois entrincheirado nas margens do Paranapanema e por fim preso militar na Ilha das Flores, no Rio de Janeiro.

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Das trincheiras, num hiato durante as dificuldades, enviou uma carta para a irmã Bina (Querubina Mendonça, 2 anos mais velha). Suas palavras constituem um documento valioso, representam o depoimento honesto e despretensioso de um rapaz passando pela inusitada experiência de participar de maior revolução cívica-politica da nação, um mito na saga paulista e central na História do Brasil.

Os anos de 29 a 34 foram conturbados para S. Paulo. Decorrente da Crise de 29, a derrocada do café – o principal item de produção e exportação do estado – provocou abalos econômicos em toda a população, que repercutiram nos negócios oficiais e atingiram todas as famílias. Para agravar houve também a derrubada de dois presidentes paulistas – um empossado outro eleito – que apeou o povo bandeirante do protagonismo politico nacional.

Era um momento crítico para S. Paulo, precisava mostrar sua força, se reinventar, encontrar novas vocações e destinos. Industrialização, comércio, criação de gado, diversificação agrícola, foi neste cenário difícil e estimulante que a extensa vida do Sr. António se desenrolou.

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Sobre a carta de sua mocidade, seu registro pessoal da Revolução de 32, três coisas se destacam, e corroboram as historias dos períodos conflagrados. Primeira, o idealismo do soldado, aderente a pregação e a propaganda politica do lado em que está engajado. Segundo, o desconforto pessoal das campanhas, um sentimento de provisoriedade onde falta tudo e cada coisa é valiosa. Terceira, a monotonia do dia a dia das tropas, que lembra a situação de um peão de xadrez, que sabe ser imprescindível para o jogo, mas desconhece porque está naquele lugar e para onde será movido. Ou, de repente, retirado do tabuleiro. Vale a pena ler a carta transcrita, com a fala da época: 


              Margem do Paranapanema Trincheiras -11-9-932
                                                                       Querida Bina

              Desejo que esta xxxxxxxxxx em gozo
              de bôa saúde em companhia de nossos
              queridos paes, manos e amigos.
             Há dias recebi a sua carta, só hoje que rei-
             na completa calma, e que posso responder-te.
             Estou bom de saude, creio que bala não ma-
             ta; aqui nas trincheiras não houve nem um fe-
             rido dos de Franca, só um cozinheiro é que
             foi ferido no pé, mas ele não estava nas trin-
             cheiras, estava na retaguarda, a uns 1000 metros
                                    2000 dos dictatoreais "as balas ini
             migas não gostam de valentões.

             Papai e mamãe já voltaram do passeio que
             fizeram? e como vai a madrinha? Quando é que
             mudam para a fazenda, já é a quinta carta que
             recebo e não fallam nada de mudança; que esta-
             va marcada para Setembro.
             Agradeça e retribua por mim as lembranças da
             Beny e da Haydee.
             De Jonas, desde que foi para Angatuba, não sei notícias.
             Desde hontem que não temos fogo, creio que o ini-
             migo retira-se, com a chegada da nossa artilharia.
             Peça a bença de nossos paes.
             Lembranças do teu irmão, que daqui a pou-
             poucos dias abraçaras; orgulharás então
             por ter recebido um abraço, não de irmão, mas
             sim dum paulista, que bateu-se pelos o pro-
             gresso, pela lei e pela grandeza de S. Paulo e
             do Brasil unido.

                                                                   Antonio PM

              Duda também está escrevendo.
              Espero que na próxima carta
              mande-me mais papel
              selos e envelopes

                                      AntonioPM



A farda, o utensilio de alimentação e a carta do soldado paulista foram doados, em 2012 (centenário de seu nascimento), para a Galeria da AFPESP Jorge Mancini.


Foi um prazer e um aprendizado conhecer este peculiar episódio da vida de um soldado paulista de 32. Agradeço muito ao meu amigo Hélio Oliveira e à sua mãe a Sra. Maria Zélia Mendonça de Oliveira (filha do herói) que me forneceram todo o material publicado e, pacientemente, responderam todas as minhas inúmeras questões.

FOTOS, IMAGENS E REPORTAGENS

Carta do Soldado Antonio de Paula Mendonça para a irmã Querubina Mendonça

Foto dos Soldados da Tropa do Sodado Antonio de Paula Mendonça (segundo a direita) desgastada pelo  tempo

Foto do Soldado Antonio de Paula Mendonça na velhice

Reportagem na 'Folha do Servidor Publico' da doação da Farda e Carta para a AFPESP

2 comentários:

  1. O que é a memória? A memória é o registro de fatos e feitos que marcaram momentos significativos da vida de um indivíduo, de um país e que servem como marco histórico para a compreensão dos eventos, mesmo os triviais, que norteavam as relações particulares e que fundamentam a análise sociológica de um povo e do Estado. Lendo estes acontecimentos firmo em meu espírito o entendimento ensinado por Max Weber sobre o homem e suas circunstâncias ditadas pela dominação de líderes nos quais acreditamos como sendo emanadas por nós mesmos.

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  2. Carlos, obrigado pelo comentário.

    Escrevi um haiku sobre a memória, gosto de citá-lo:

    A memória e falaz,
    nem sempre e verdade
    o que ela nos traz.

    Sempre passo por um choque cognitivo quando vou da História Oficial para as histórias pessoais.

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