O Sr. Antonio, de Cristais Paulista, viveu bravamente 95
anos – de 1912 até 2007. Acompanhou os trepidantes acontecimentos da História
de S. Paulo por todo o século passado, sempre do ponto de vista de um morador do interior do Estado, das regiões em torno de Franca e Barretos.
Viveu uma vida longa, rica e produtiva. Teve um casamento que
durou 72 anos, seis filhos que obtiveram grau universitário e dezenas de netos
e bisnetos. Uma exemplar trajetória paulista. Foram homens como este que fizeram do Estado de S. Paulo a 'locomotiva do Brasil', como já disse algum poeta.
Entretanto, talvez o ponto culminante de sua existência, a
prova de fogo mais marcante que enfrentou, durou pouco. Aconteceu nos seus 20
anos, quando – durante alguns meses – participou da Revolução
Constitucionalista de 32. Primeiro aquartelado em Bauru, depois entrincheirado
nas margens do Paranapanema e por fim preso militar na Ilha das Flores, no Rio
de Janeiro.
*** ***
Das trincheiras, num hiato durante as dificuldades, enviou uma carta
para a irmã Bina (Querubina Mendonça, 2 anos mais velha). Suas palavras
constituem um documento valioso, representam o depoimento honesto e
despretensioso de um rapaz passando pela inusitada experiência de participar de
maior revolução cívica-politica da nação, um mito na saga paulista e central na
História do Brasil.
Os anos de 29 a 34 foram conturbados para S. Paulo.
Decorrente da Crise de 29, a derrocada do café – o principal item de produção e
exportação do estado – provocou abalos econômicos em toda a população, que
repercutiram nos negócios oficiais e atingiram todas as famílias. Para agravar houve
também a derrubada de dois presidentes paulistas – um empossado outro eleito – que
apeou o povo bandeirante do protagonismo politico nacional.
Era um momento crítico para S. Paulo, precisava mostrar sua
força, se reinventar, encontrar novas vocações e destinos. Industrialização,
comércio, criação de gado, diversificação agrícola, foi neste cenário difícil e
estimulante que a extensa vida do Sr. António se desenrolou.
*** ***
Sobre a carta de sua mocidade, seu registro pessoal da Revolução
de 32, três coisas se destacam, e corroboram as historias dos períodos
conflagrados. Primeira, o idealismo do soldado, aderente a pregação e a
propaganda politica do lado em que está engajado. Segundo, o desconforto
pessoal das campanhas, um sentimento de provisoriedade onde falta tudo e cada
coisa é valiosa. Terceira, a monotonia do dia a dia das tropas, que lembra a
situação de um peão de xadrez, que sabe ser imprescindível para o jogo, mas desconhece
porque está naquele lugar e para onde será movido. Ou, de repente, retirado do
tabuleiro. Vale a pena ler a carta transcrita, com a fala da época:
Margem do Paranapanema Trincheiras -11-9-932
Querida Bina
Margem do Paranapanema Trincheiras -11-9-932
Querida Bina
Desejo que esta xxxxxxxxxx em gozo
de bôa saúde em companhia de nossos
queridos paes, manos e amigos.
Há dias recebi a sua carta, só hoje que rei-
na completa calma, e que posso responder-te.
Estou bom de saude, creio que bala não ma-
ta; aqui nas trincheiras não houve nem um fe-
rido dos de Franca, só um cozinheiro é que
foi ferido no pé, mas ele não estava nas trin-
cheiras, estava na retaguarda, a uns 1000 metros
2000 dos dictatoreais "as balas ini
migas não gostam de valentões.
Papai e mamãe já voltaram do passeio que
fizeram? e como vai a madrinha? Quando é que
mudam para a fazenda, já é a quinta carta que
recebo e não fallam nada de mudança; que esta-
va marcada para Setembro.
Agradeça e retribua por mim as lembranças da
Beny e da Haydee.
De Jonas, desde que foi para Angatuba, não sei notícias.
Desde hontem que não temos fogo, creio que o ini-
migo retira-se, com a chegada da nossa artilharia.
Peça a bença de nossos paes.
Lembranças do teu irmão, que daqui a pou-
poucos dias abraçaras; orgulharás então
por ter recebido um abraço, não de irmão, mas
sim dum paulista, que bateu-se pelos o pro-
gresso, pela lei e pela grandeza de S. Paulo e
do Brasil unido.
Antonio PM
Duda também está escrevendo.
Espero que na próxima carta
mande-me mais papel
selos e envelopes
AntonioPM
A farda, o utensilio de alimentação e a carta do soldado paulista foram doados, em 2012 (centenário de seu nascimento), para a Galeria da AFPESP Jorge Mancini.
de bôa saúde em companhia de nossos
queridos paes, manos e amigos.
Há dias recebi a sua carta, só hoje que rei-
na completa calma, e que posso responder-te.
Estou bom de saude, creio que bala não ma-
ta; aqui nas trincheiras não houve nem um fe-
rido dos de Franca, só um cozinheiro é que
foi ferido no pé, mas ele não estava nas trin-
cheiras, estava na retaguarda, a uns 1000 metros
2000 dos dictatoreais "as balas ini
migas não gostam de valentões.
Papai e mamãe já voltaram do passeio que
fizeram? e como vai a madrinha? Quando é que
mudam para a fazenda, já é a quinta carta que
recebo e não fallam nada de mudança; que esta-
va marcada para Setembro.
Agradeça e retribua por mim as lembranças da
Beny e da Haydee.
De Jonas, desde que foi para Angatuba, não sei notícias.
Desde hontem que não temos fogo, creio que o ini-
migo retira-se, com a chegada da nossa artilharia.
Peça a bença de nossos paes.
Lembranças do teu irmão, que daqui a pou-
poucos dias abraçaras; orgulharás então
por ter recebido um abraço, não de irmão, mas
sim dum paulista, que bateu-se pelos o pro-
gresso, pela lei e pela grandeza de S. Paulo e
do Brasil unido.
Antonio PM
Duda também está escrevendo.
Espero que na próxima carta
mande-me mais papel
selos e envelopes
AntonioPM
A farda, o utensilio de alimentação e a carta do soldado paulista foram doados, em 2012 (centenário de seu nascimento), para a Galeria da AFPESP Jorge Mancini.
Foi
um prazer e um aprendizado conhecer este peculiar episódio da vida de um soldado
paulista de 32. Agradeço muito ao meu amigo Hélio Oliveira e à sua mãe a Sra. Maria Zélia
Mendonça de Oliveira (filha do herói) que me forneceram todo o material publicado
e, pacientemente, responderam todas as minhas inúmeras questões.
FOTOS, IMAGENS E REPORTAGENS.
Carta do Soldado Antonio de Paula Mendonça para a irmã Querubina Mendonça
Foto dos Soldados da Tropa do Sodado Antonio de Paula Mendonça (segundo a direita) desgastada pelo tempo
O que é a memória? A memória é o registro de fatos e feitos que marcaram momentos significativos da vida de um indivíduo, de um país e que servem como marco histórico para a compreensão dos eventos, mesmo os triviais, que norteavam as relações particulares e que fundamentam a análise sociológica de um povo e do Estado. Lendo estes acontecimentos firmo em meu espírito o entendimento ensinado por Max Weber sobre o homem e suas circunstâncias ditadas pela dominação de líderes nos quais acreditamos como sendo emanadas por nós mesmos.
ResponderExcluirCarlos, obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirEscrevi um haiku sobre a memória, gosto de citá-lo:
A memória e falaz,
nem sempre e verdade
o que ela nos traz.
Sempre passo por um choque cognitivo quando vou da História Oficial para as histórias pessoais.