quarta-feira, 12 de abril de 2017

Uma Utopia Sampaulistana


Os chineses – sabiam como as coisas funcionam no Brasil – chegaram uma semana depois do carnaval e fecharam com tapumes o miolo do Centro Novo Sampaulista. Interditaram o Theatro Municipal, o conjunto escultórico dedicado a Carlos Gomes e os jardins de palmeiras adjacentes. O pátio de obras se espalhou pelas ruas em torno do teatro, grande parte da Praça Ramos de Azevedo, os baixos do Viaduto e metade do Vale do Anhangabaú. A misteriosa intervenção funcionava como um formigueiro bem coreografado.

O compromisso de eficiência era explícito, anunciado por um luminoso no teto do teatro. O marcador contava, regressivamente, o cronograma da obra: 40 semanas / 280 dias, quase a mesma duração de uma gravidez.

A invasão era imensa, barulhenta e incômoda, porém limpa, eficaz e organizada.
Ao longo do perímetro foram montados diversos mirantes de observação. Varandas de tela de alambrado que permitiam à população acompanhar, confortavelmente, a evolução dos trabalhos.

O manejo das grandes árvores era exemplar, cuidadosamente desenraizadas e transplantadas para a área reservada para regeneração, um parque à beira do rio Tamanduateí. As esculturas, postes e luminárias históricas também receberam tratamento especial, retirados e levados para galpões visitáveis sob o viaduto, onde passariam por um processo de restauração. Paralelamente o teatro inteiro foi embrulhado em mantas e telas azuis. Tudo amarrado com cabos de aço formando estreitos desenhos losângicos. Como um bibelô de porcelana inestimável, frágil e precioso.

Então as escavações se iniciaram. No lado voltado para o Anhangabaú abriram três amplos túneis, dois para entrada e saída de caminhões e o terceiro para trânsito de pedestres. A agitação era intensa, contínua e ininterrupta. Atravessava os dias e entrava pelas noites. Caçambas carregadas de terra saiam em caravanas. Grossas chapas de aço e poderosas vigas eram engolidas pela vasta caverna, junto com centenas de rodas da altura de um homem. O povo apelidou a larga caverna, devoradora das pastilhas de ferro, de ‘banguela gulosa’.

Ninguém entendia direito o objetivo do megaprojeto. As autoridades, divagantes e imprecisas, declaravam se tratar de um presente-surpresa ofertado à Sampaulo. Contudo, o verdadeiro objetivo da intervenção permanecia nublado, guardado pela melhor das tergiversações: a muralha de fofocas e lendas urbanas incentivadas. Durante muito tempo disseminou-se a ideia de um gigantesco shopping subterrâneo – o maior do mundo – que se alastraria por baixo do Centro Novo interligando uma dúzia de linhas de ônibus e metrôs. A pretensiosa torre de babel invertida ganhou até nome popular: Inferno Sampaulista. Entretanto, como havia apenas um ponto onde as obras aconteciam de fato, esta utopia fabulária perdeu adeptos.

Prosperava também, insuflada por um radialista grandíloco, a garantia de que o presente-surpresa seria a mãe de todas as garagens. Uma monstruosa cidade invertida, de dezenas de círculos enterrados, que comportaria meio milhão de carros. Essa alternativa falaciosa teve breve curso, morreu sepultada na sua própria tolice.

Na décima terceira semana, no meio da noite, o letreiro luminoso que contava os dias remanescentes da obra ganhou um complemento. A teimosa frase de Galileu desafiando a Inquisição: ‘Eppur si muove!’ – ‘e no entanto se move’.

A citação não oferecia nova pista, nem explicação, só aumentava a complexidade da charada proposta. Mais uma camada de contrainformação foi acrescentada ao projeto. Os dias corriam e ninguém ousava sugerir qualquer hipótese coerente, ou mesmo teorias mirabolantes que explicassem o letreiro, a obra e a relação entre os dois.

Mais uma vez à noite, três semanas depois da exibição da frase italiana, brilhou uma data no anúncio iluminado: ‘22 / 09’, o início da primavera. Na manhã seguinte todos os jornais publicaram uma nota oficial convidando a população para testemunhar ‘O Bailado Colossal’.

Trinta dias antes do espetáculo, com a eficiência da engenharia chinesa, arquibancadas tubulares começaram a ser erguidas. Acolheriam 200 mil pessoas, com ingressos gratuitos, sorteados e controlados. Também foram confirmados os boatos de que Arrigo Barnabé havia sido contratado para elaborar a trilha sonora do magnífico evento, talvez o maior do mundo. Para evitar assédios, o artista – que sabia o que iria acontecer – foi convidado a se isolar, até o dia apoteótico, numa discreta unidade do exercito, no interior de Sampaulo.

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Talvez por sorte ou acaso o dia marcado para o prometido balé nasceu fresco e ensolarado. Todos os lugares disponíveis e possíveis estavam ocupados. Prédios com vista para o Anhangabaú ofereciam e traficavam espaços. A música popular e cívica, a curiosidade e a perplexidade formavam uma nuvem que envolvia o pátio da obra. Parecia final de Copa do Mundo com o Brasil na disputa, porém com ansiedade diferente, porque não havia o perigo de derrota. Entretanto, especulava-se a possibilidade de um grande fracasso.

Às 11:45 uma grande esfera de acrílico transparente subiu nos ares, içada por guindastes e estabilizada exatamente sobre o Theatro Municipal. Arrigo Barnabé de casaca tricolor – preta, branca e vermelha – estava dentro, como um peixe colorido num aquário bojudo. O público estridulava, cigarreava e rechinava, num silêncio alucinado, divagante e barulhento.

Meio-dia dezenas de caixas acústicas espalhas pelo vale e edifícios em torno trepidaram com os primeiro acordes da música. Era eletrônica, portentosa e retumbante, não cabia em nenhuma notação. Mistura da Ode à Alegria de Beethoven, da ‘Sinfonia dos Mil’ de Mahler e da Abertura do Guarani. Porém riffs de guitarras cósmicas cruzavam os andamentos; uivos roucos de Cellos telúricos ponteavam os crescendos; e trompas galácticas douravam os fortíssimos desmedidos. Arrigo fingia reger a música, entretanto era a multidão que respondia afinada aos seus movimentos.

Então iniciou-se o bailado das pedras – uma acelerada morosidade – atemporal e maravilhoso como os movimentos do universo; imperceptível e infinitamente divisível em instantes sublimes como o por do sol. Tudo poderia ser descrito numa fórmula simples: três passos para o lado, oito passos para frente e um giro de 90 graus.

Contudo, nenhum conjunto de palavras é capaz de transmitir o maravilhamento daquela montanha se movendo. Milhares de toneladas de pedras e argamassa, envoltas num pacote azul, se deslocando muito lentamente – feito uma flor preguiçosa se abrindo. Primeiro para esquerda, três passos menores; depois oitos passos longos avançando para o vale, por fim o giro de 90 graus anti-horários. Só então a plateia e o cosmos descansaram.

A música valsada que coordenada os movimentos da montanha diminuiu de intensidade e o pacote azul se abriu devagar em oito pétalas, exibindo o teatro com o famoso frontão voltado para o vale. Houve um momento de espanto, assombro e silêncio reverente – aquele intervalo necessário para a Razão e a Realidade se colarem novamente – depois vieram os aplausos demorados. Os jornais registraram que a aclamação durou mais do que o realinhamento do prédio.

Meses depois, quando o audacioso contador zerou, o Theatro Municipal de Sampaulo estava completamente restaurado e funcional. Os arredores sofreram uma efervescente transformação para se adaptar à nova realidade. A caverna colossal cavada no subsolo do edifico acolheu tuneis para melhorar fluxo do transito e abriu espaços para oficinas e estacionamentos para a renovada casa de espetáculos. As empresas imobiliárias avançavam famintas sobre o novo polo de atração.

Os chineses partiram para Buenos Aires, foram contratados pelo Teatro Colón. Todavia, lá será apenas mais uma obra de engenharia, todo mundo já sabe o que via acontecer.




Para saber mais sobre SAMPAULO
Clique >> SAMPAULO: VERTENTE 1641

2 comentários:

  1. Texto fabuloso, arrepiante. Obrigada por me fazer vibrar!

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  2. Sulapiesan, Obrigado pela visita e comentário. Que custa sonhar com o Theatro voltado para o lugar certo.

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