Os chineses – sabiam como as coisas funcionam no Brasil – chegaram uma semana depois do carnaval e fecharam com tapumes o miolo do Centro Novo Sampaulista. Interditaram o Theatro Municipal, o conjunto escultórico dedicado a Carlos Gomes e os jardins de palmeiras adjacentes. O pátio de obras se espalhou pelas ruas em torno do teatro, grande parte da Praça Ramos de Azevedo, os baixos do Viaduto e metade do Vale do Anhangabaú. A misteriosa intervenção funcionava como um formigueiro bem coreografado.
O compromisso de eficiência era explícito, anunciado por um
luminoso no teto do teatro. O marcador contava, regressivamente, o cronograma
da obra: 40 semanas / 280 dias, quase a mesma duração de uma gravidez.
A invasão era imensa, barulhenta e incômoda, porém limpa, eficaz
e organizada.
Ao longo do perímetro foram montados diversos mirantes de observação. Varandas de tela de alambrado que permitiam à população acompanhar, confortavelmente, a evolução dos trabalhos.
Ao longo do perímetro foram montados diversos mirantes de observação. Varandas de tela de alambrado que permitiam à população acompanhar, confortavelmente, a evolução dos trabalhos.
O manejo das grandes árvores era exemplar, cuidadosamente
desenraizadas e transplantadas para a área reservada para regeneração, um
parque à beira do rio Tamanduateí. As esculturas, postes e luminárias
históricas também receberam tratamento especial, retirados e levados para galpões
visitáveis sob o viaduto, onde passariam por um processo de restauração. Paralelamente
o teatro inteiro foi embrulhado em mantas e telas azuis. Tudo amarrado com cabos
de aço formando estreitos desenhos losângicos. Como um bibelô de porcelana inestimável,
frágil e precioso.
Então as escavações se iniciaram. No lado voltado para o
Anhangabaú abriram três amplos túneis, dois para entrada e saída de caminhões e
o terceiro para trânsito de pedestres. A agitação era intensa, contínua e
ininterrupta. Atravessava os dias e entrava pelas noites. Caçambas carregadas
de terra saiam em caravanas. Grossas chapas de aço e poderosas vigas eram
engolidas pela vasta caverna, junto com centenas de rodas da altura de um
homem. O povo apelidou a larga caverna, devoradora das pastilhas de ferro, de ‘banguela
gulosa’.
Ninguém entendia direito o objetivo do megaprojeto. As
autoridades, divagantes e imprecisas, declaravam se tratar de um presente-surpresa
ofertado à Sampaulo. Contudo, o verdadeiro objetivo da intervenção permanecia nublado,
guardado pela melhor das tergiversações: a muralha de fofocas e lendas urbanas
incentivadas. Durante muito tempo disseminou-se a ideia de um gigantesco shopping
subterrâneo – o maior do mundo – que se alastraria por baixo do Centro Novo
interligando uma dúzia de linhas de ônibus e metrôs. A pretensiosa torre de
babel invertida ganhou até nome popular: Inferno Sampaulista. Entretanto, como
havia apenas um ponto onde as obras aconteciam de fato, esta utopia fabulária perdeu
adeptos.
Prosperava também, insuflada por um radialista grandíloco,
a garantia de que o presente-surpresa seria a mãe de todas as garagens. Uma
monstruosa cidade invertida, de dezenas de círculos enterrados, que comportaria
meio milhão de carros. Essa alternativa falaciosa teve breve curso, morreu sepultada
na sua própria tolice.
Na décima terceira semana, no meio da noite, o letreiro
luminoso que contava os dias remanescentes da obra ganhou um complemento. A teimosa
frase de Galileu desafiando a Inquisição: ‘Eppur si muove!’ – ‘e no entanto se move’.
A citação não oferecia nova pista, nem explicação, só aumentava a complexidade
da charada proposta. Mais uma camada de contrainformação foi acrescentada ao projeto.
Os dias corriam e ninguém ousava sugerir qualquer hipótese coerente, ou mesmo teorias
mirabolantes que explicassem o letreiro, a obra e a relação entre os dois.
Mais uma vez à noite, três semanas depois da exibição da frase italiana,
brilhou uma data no anúncio iluminado: ‘22
/ 09’, o início da primavera. Na manhã seguinte todos os jornais publicaram
uma nota oficial convidando a população para testemunhar ‘O Bailado Colossal’.
Trinta dias antes do espetáculo, com a eficiência da
engenharia chinesa, arquibancadas tubulares começaram a ser erguidas.
Acolheriam 200 mil pessoas, com ingressos gratuitos, sorteados e controlados. Também
foram confirmados os boatos de que Arrigo Barnabé havia sido contratado para elaborar
a trilha sonora do magnífico evento, talvez o maior do mundo. Para evitar
assédios, o artista – que sabia o que iria acontecer – foi convidado a se isolar, até o dia apoteótico, numa discreta unidade do exercito, no interior de
Sampaulo.
***** ***** *****
Talvez por sorte ou acaso o dia marcado para o prometido balé
nasceu fresco e ensolarado. Todos os lugares disponíveis e possíveis estavam
ocupados. Prédios com vista para o Anhangabaú ofereciam e traficavam espaços. A
música popular e cívica, a curiosidade e a perplexidade formavam uma nuvem que envolvia
o pátio da obra. Parecia final de Copa do Mundo com o Brasil na disputa, porém com
ansiedade diferente, porque não havia o perigo de derrota. Entretanto, especulava-se a possibilidade de um grande fracasso.
Às 11:45 uma grande esfera de acrílico transparente subiu
nos ares, içada por guindastes e estabilizada exatamente sobre o Theatro
Municipal. Arrigo Barnabé de casaca tricolor – preta, branca e vermelha – estava
dentro, como um peixe colorido num aquário bojudo. O público estridulava,
cigarreava e rechinava, num silêncio alucinado, divagante e barulhento.
Meio-dia dezenas de caixas acústicas espalhas pelo vale e
edifícios em torno trepidaram com os primeiro acordes da música. Era
eletrônica, portentosa e retumbante, não cabia em nenhuma notação. Mistura da Ode
à Alegria de Beethoven, da ‘Sinfonia dos Mil’ de Mahler e da Abertura do
Guarani. Porém riffs de guitarras cósmicas cruzavam os andamentos; uivos roucos
de Cellos telúricos ponteavam os crescendos; e trompas galácticas douravam os
fortíssimos desmedidos. Arrigo fingia reger a música, entretanto era a multidão
que respondia afinada aos seus movimentos.
Então iniciou-se o bailado das pedras – uma acelerada morosidade – atemporal e
maravilhoso como os movimentos do universo; imperceptível e infinitamente
divisível em instantes sublimes como o por do sol. Tudo poderia ser descrito numa
fórmula simples: três passos para o lado, oito passos para frente e um giro de
90 graus.
Contudo, nenhum conjunto de palavras é capaz de transmitir o
maravilhamento daquela montanha se movendo. Milhares de toneladas de pedras e
argamassa, envoltas num pacote azul, se deslocando muito lentamente – feito uma
flor preguiçosa se abrindo. Primeiro para esquerda, três passos menores; depois
oitos passos longos avançando para o vale, por fim o giro de 90 graus
anti-horários. Só então a plateia e o cosmos descansaram.
A música valsada que coordenada os movimentos da montanha diminuiu de intensidade e o pacote azul se abriu devagar em oito pétalas,
exibindo o teatro com o famoso frontão voltado para o vale. Houve um momento de espanto,
assombro e silêncio reverente – aquele intervalo necessário para a Razão e a Realidade se
colarem novamente – depois vieram os aplausos demorados. Os jornais
registraram que a aclamação durou mais do que o realinhamento do prédio.
Meses depois, quando o audacioso contador zerou, o Theatro
Municipal de Sampaulo estava completamente restaurado e funcional. Os arredores
sofreram uma efervescente transformação para se adaptar à nova realidade. A
caverna colossal cavada no subsolo do edifico acolheu tuneis para melhorar
fluxo do transito e abriu espaços para oficinas e estacionamentos para a renovada casa de
espetáculos. As empresas imobiliárias avançavam famintas sobre o novo polo de
atração.
Texto fabuloso, arrepiante. Obrigada por me fazer vibrar!
ResponderExcluirSulapiesan, Obrigado pela visita e comentário. Que custa sonhar com o Theatro voltado para o lugar certo.
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