terça-feira, 15 de maio de 2018

CAROLINA SILENCIADA


Anahí Paz está doutoranda na Universidade de Bristol, o tema da tese envolve alguma coisa esquisita que ela chama de ‘Demonologia Bíblica’. A trajetória da minha amiga é enviesada, com 24 anos era uma bonita Analista de Sistemas de cabelos cor de mel é lábios túmidos, abandonou tudo para estudar História. No último fim de ano esteve no Brasil, já era uma jovem senhora. Os velhos informáticos promoveram um jantar de reencontro. Desde muito tempo, bem antes de ser pop – mas ela do que eu –  tínhamos interesses lovecraftianos. Lembrando deste velho laço brinquei com ela.

– Sua pesquisa ficaria mais bem encaixada na Universidade de Miskatonic."

– Acho que não rolaria, computadores não funcionam bem lá, os demônios de Lovecraft não são muito binários e nem o pessoal de Arkham é receptivo às mulheres.”

Havia outro viés que compartilhava com Anahí, ambos éramos leitores bissextos de Machado de Assis, resolvi expandir nossos pensamentos vadios.

“– São infinitas as maneiras de calar as mulheres, mesmo com carinho e amor. Veja Carolina Augusta Xavier de Novais, a mulher do Bruxo. Era lida e culta, eventualmente revisora e parceira. Consta que escreveu centenas de cartas, porém para um único destinatário: o marido. Antes de morrer nosso imortal ordenou e presidiu a queima de toda a correspondência entre os dois. Dele sobraram duas cartas simpáticas e gentis, dela nada, foi completamente emudecida.”

– Verdade? Era um tipo de maldade e prepotência que as pessoas cometiam e nem sequem percebiam. Interessante você falar disso, ignorava este silêncio imposto a ela. Uma amiga inglesa revisou um trabalho sobre Eça de Queiroz em Bristol. Pediu ajuda sobre o sentido de uma frase, mencionou que estava numa correspondência de Carolina Machado de Assis guardada na biblioteca da Universidade. Na hora quase não prestei atenção na remetente, mas se for verdade, então Carolina não foi completamente silenciada, sobrou uma carta dela.”   

Fiquei espantado, disse que gostaria de ler esta carta inaudita, mas sem esperança, eram conversas na mesa de um bar, prometidas e esquecidas. Seis meses depois, espantando,  recebi por e-mail um arquivo Word contendo a carta improvável.
“Faz tempo que estou com esta transcrição da carta de Carolina, antes de te enviar queria juntar mais informações sobre o documento, mas Ada, minha amiga revisora, mudou para os Estados Unidos e perdi qualquer contato com ela. Vai assim mesmo, Carolina, pelada de semântica.”

*****     *****     *****


Rio, 23 de setembro de 1879

José,

Escrevo-te para refutar-me. Prometi nunca mais procurar-te ou responder tuas missivas, porém o futuro é incerto e provocador, à medida que progride conduz-nos por veredas inusitadas. O destino levou-me ao casamento com Machado de Assis, por causa disso, outra vez, compartilhamos o mesmo embaraço: eu fazer um pedido, tu avaliare-lo e talvez nega-lo.

A polêmica sobre o “Primo Basílio” me não espantou, amadurecia como possibilidade. Apesar de andares vagando pelo mundo e Machado viver pacatamente na cidade do Rio de Janeiro, de muitas maneiras permaneciam adversários e reversos. Romantismo contra Realismo foi à forma eleita para se digladiarem.

Apreciei bastante o viés magnânimo de tua carta de junho passado comentando o artigo d“O Cruzeiro” sobre o “Primo Basílio”. A admiração aumentou com a generosidade de te colocares à disposição, depois de leres todos os folhetins publicados, para uma discussão acerca dos princípios da Escola Realista. O que não conseguiste conter foi a corrosiva ironia inseparável de tua pessoa.

Machado repassou repetidas vezes as ponderações que apresentaste, sabe-as de cor. Se não as respondeu publicamente foi por prudência, timidez e tédio à controvérsia. Deves calcular o quanto esta confrontação transoceânica de dois estimados escritores transformou-se em questão candente, pública e coletiva. Penas demais intervieram na contenda. Qualquer debate pelas revistas e jornais decairia depressa em alarido e balburdia, sem regra ou norma. A outra via – a correspondência pessoal e discreta – seria impraticável, meu marido não conseguiria manter a conversa dentro dos amenos limites da Literatura.

Perdoe-me o introito longo, vou enfim apresentar-te minha demanda. Soube pelo meu irmão Miguel e pelo povo da Condessa de São Mamede que estás redigindo uma longa e detalhada réplica aos artigos d”O Cruzeiro”; que intentas publica-la como prólogo à segunda edição d”O Crime do Padre Amaro”. Atrevo-me a recomendar-te paciência e cautela.

Desde 78, depois da publicação de “Iaiá Garcia”, Machado vem atravessando largo período de meditação, navegando nos mares de Flaubert. Lê, relê, grifa e toma notas – especialmente “Madame Bovary” – sem contudo jamais cita-lo em quaisquer dos seus escritos. O próximo romance será muito diferente do anterior, surpreendente, avançará para quase além do Realismo.

Neste novo cenário temo que teu prefácio projetado possa ficar deslocado e dissonante; ou incitar celeumas desastradas. É impossível antecipar como reagirá o humor de cada um de vocês. Prevejo confrontações incandescentes, incontroláveis e desnecessárias ou silêncios irados e multiplicadores de rancores. Em qualquer dos casos me sofrerei e a História de ambos ficará maculada.

Espero que te inclines para o mais conveniente para todos.


De tua amiga,

Carolina Augusta Xavier de Novais Machado de Assis


11 comentários:

  1. Que jóia, que achado! O papel da mulhe,r mais uma vez, se consolida como equilibrio entre as desavenças e desafetos de gigantes literatos. Moldando sutil e inteligente acordos humanos, clássicos e pacíficos.

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  2. Obrigado, Oneida Matos, pela visita e pelo perfeito entendimento do arco do artigo.

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  3. Excelente postagem! Uma pena não conhecermos anto de Carolina - e a visão que ela apresenta na carta deixou ainda maior curiosidade. Muito obrigado e parabéns aos envolvidos pelo trabalho!

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  4. Obrigado Helio Silva,
    Esta texto faz parte um conjunto do ‘Cartas Possíveis’ que estou escrevendo sobre personagens históricas e literárias que poderiam ter se correspondido.
    Tudo é ficção, mas estudei bastante os interlocutores e existia a possibilidade histórica dos envolvidos terem trocado cartas.

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  5. A Revista O Cruzeiro mais conhecida foi a fundada por Assis Chautebriand em 1928 e foi publicada ate 1965. Talvez tivesse existido outra em 1878, senao, esta carta seria "impossivel"

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  6. comentario sobre a inexistencia da Revista O Cruzeiro feito por Roque E.Campos

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  7. Nas minhas pesquisas para escrever esta 'carta possível', constatei que houve, no século XIX, uma revista chamado 'O Cruzeiro' que veiculou artigos referentes à contraposição Machado de Assis / Eça de Queiroz.

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  8. Não existe menção de tal correspondência no catálogo do Arquivo da Universidade de Bristol. A carta de Carolina é inverosímil.

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    1. Claro, que não existe. O texto é um conto, de uma coleção chamada: 'Cartas Possíveis'.

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  9. Obrigado pelo esclarecimento, mas o modo como está apresentado pode induzir em erro um leitor desconhecedor do contexto, como eu.

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    1. Com todo aquele introito, à maneira de Borges, achei que os leitores entenderiam o contexto.
      Também quero agradecer, suas dúvidas são um elogio ao conto
      Existe outro conto – Carta de Lovecraft para Borges – que tirei da internet porque era muito mais crível.

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