sexta-feira, 25 de outubro de 2013

1925 - 'OVERDUBBING' - FIM DA FIDELIDADE NAS GRAVAÇÕES


Overdubbing [...] is a technique used in audio recording, whereby a performer listens to an existing
recorded performance, and plays a new performance along with it, which is also recorded. (Wikipedia)

Por consenso, 1925 marca o fim da era de gravações acústicas, até então o processo de produção de discos utilizava exclusivamente artefatos e princípios mecânicos, sem qualquer componente elétrico ou eletrônico. O som, captado por um imenso cone, movia uma membrana; que agitava uma agulha; que cavava um sulco numa superfície de cera. A reprodução fazia o caminho inverso: a agulha percorria a trilha fazendo vibrar uma membrana que gerava o som, amplificado por um cone. Mais analógico impossível, a fissura escavada no disco guardava fisicamente a memória exata do movimento que a produziu.

Este sistema cinético demandava energia, que, no momento da captação, era fornecida pelos artistas e pelos aparelhos musicais. Por isso os cantores necessitavam ter voz potente e os músicos instrumentos possantes, tanto que virtuoses camerísticos e instrumentos intimistas não funcionavam bem. Um banquinho e um violão não serviam. Os acontecimentos musicais precisavam invadir, avassaladores e grandiloquentes, os megafones para serem corretamente registrados, por isso os cantores berravam e os conjuntos e as orquestras se comprimiam barulhentos defronte a boca maior do cone acústico.



Enrico Caruso tinha o perfil perfeito para estrela dos gramofones e vitrolas a manivela. Possuía fama mundial, respeito artístico e, sobretudo, voz tonitruante. Como artista exclusivo da Victor Records tornou-se o primeiro mega-star da indústria fonográfica, estabeleceu os primeiros recordes de vendas e inaugurou os discos de ouro, platina e outros metais.

Infelizmente a última gravação do tenor ocorreu em 16/09/1920, pouco antes dos microfones e válvulas anunciarem a nova era das gravações elétricas. Estes avanços tecnológicos, entre outras coisas, realizam um sonho antigo, possibilitaram a dublagem, instituíram o overdubbing; e, por consequência, ofereceram uma longa e lendária sobrevida para Caruso. Tanto que ainda permanece aberta a velha questão: O tenor era mesmo o maioral? Ou foram os discos e a divulgação maciça que fabricaram e garantiram sua idolatria?

Também, e muito mais importante, o overdubbing decretou a morte definitiva da Fidelidade – entendida como a reprodução exata de um acontecimento musical. A possibilidade de dublagem acabou com qualquer – eventual ou pretensa – similaridade e correspondência entre as execuções ao vivo e as gravações resultantes do evento. O overdubbing inventou os Engenheiros de Som, uma camuflada e inusitada espécie de artista.

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 Na época exclusivamente acústica, nem as discos, nem as victrolas alcançavam o volume sonoro suficiente para serem utilizados como inputs na técnica do ovedub, o resultado ficava anêmico, cacofônico, insatisfatório. Entretanto, as coisas mudaram, com a captação elétrica podia-se controlar o volume, assim começou a vitoriosa saga dos Engenheiros de Som, a música gravada mudou de patamar e migrou para outra dimensão, distinta da música ao vivo. Nunca mais foi a mesma, rompeu os vínculos diretos e abandonou a escassa Fidelidade com a música ao vivo.

Nas sessões de gravação da fase acústica, era mandatório: tudo que se pretendesse colocar no disco precisava estar presente, defronte a boca grande do cone, e fazendo muito barulho. A captura demarcava um momento sacrossanto, qualquer erro ou acidente resultava em desastre, obrigava jogar tudo fora e retomar os trabalhos desde o inicio. A gravação era verdadeira, equivalente a um instantâneo fotográfico, documentava um evento e um momento único do passado, não permitia retoques, nem correções.

Walter Benjamim (A Obra de Arte na Era da Sua Reprodutibilidade Técnica - 1936) chamava de ‘aura’ a estranha emanação que envolve as autênticas obras de arte. Um sentimento de mistério, estranheza e deslumbramento, provocado pela raridade e univocidade de cada criação artística genuína. Uma Pintura tem ‘aura’, porém suas reproduções não têm. O Teatro também tem – por que a presença física dos atores injeta ‘aura’ na obra inteira cada vez que atuam na peça. O Cinema não tem – por que os filmes não possuem unicidade, nem ‘sacralidade’, nem ‘fisicalidade’; são criações coletivas, construídas de fragmentos elaborados de maneira dispersa, não cronológica, e espalhados pelo tempo e pelo espaço. Sua conformação final admite múltiplas montagens, com diferentes mensagens. São colagens, a ‘aura’ fica difusa, esgarçada e fragmentada. Nestes termos, considerando a diversidade de artifícios, a largueza do raio de ação, os atributos e as práticas dos Engenheiros de Som, a arte das gravações está mais próxima do Cinema do que do Teatro e das execuções ao vivo.

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Quem não tem ou teve um disco RCA Red Seal? Trata-se da Victor Records, depois RCA-Victor Records, que, através de fusões, divisões e incorporações, permanece ativa e poderosa até hoje. No começo do século passado era a mais importante gravadora do mundo, e, desde 1916, vinha fazendo experiências com overdubbing. Talvez planejando melhorar e explorar comercialmente o acervo do nome mais valioso de seu elenco: Enrico Caruso. As gravações do tenor haviam sido realizadas durante a era acústica, portanto apresentavam baixa qualidade sonora, além de diversas falhas técnicas. Não era incomum a voz atropelar e soterrar o acompanhamento.

Aparentemente em 1920 a Victor Records obteve sucesso no seu plano, neste ano foi relançada uma antiga gravação de Caruso, onde a orquestra da casa, a Victor Symphony, se sobrepunha ao antigo, acanhado e apagado acompanhamento de piano. A internet esta sobrecarregada de casos de Carusos regravados. Uma boa aposta para conhecer um destes exercícios de proto remasterização é a regravação da ária Vesti La Giubba, da opera Pagliacci de Ruggiero Lencavallo. (CLIQUE AQUI: Caruso, Além Túmulo) A voz do tenor vem de um disco de 1907, dublada sobre um novo fundo mausical produzido pela orquestra da companhia,  Obviamente há parca documentação destas práticas e destes lançamentos, naqueles tempos ainda não se usavam libretos e contracapas sofisticadas, nem se mencionavam os trabalhos dos Engenheiros de Som.

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Depois que foi quebrada a relação acústica, intrínseca, necessária e romântica, entre o acontecimento musical e a gravação, as indústrias fonográficas não pararam mais. Vieram as fitas magnéticas, as mesas de mixagem de dezenas de canais e, por fim, o universo em perpétua expansão dos arquivos digitais, que permitem abandonar os rigorosos limites analógicos. Tudo é possível, mudar, corrigir, criar e programar novos sons; além de se poder mexer livremente no vasto universo dos registros antigos.

Algumas obras, inclusive, deixaram de contemplar ou comportar versões e execuções ao vivo, só existem em forma de arquivo. Foram concebidas, desde o principio, como mídias gravadas; pensadas e concretizadas com ajuda das poderosas mesas de som, utilizando montagens, mixagens, deformações, inversões e centenas de outros artifícios técnicos. Por exemplo, o principal, o mais lembrado e o mais inquietante tema sonoro do filme De olhos bem Fechados (Eyes Wide Shut), de Stanley Kubrick, é a peça Masked Ball, de Jocelyn Pook. Aquele da missa negra, com as moças nuas cobertas apenas por uma capa. Trata-se de um fragmento de um hino religioso ortodoxo, cantando em romeno, gravado e depois tocado de trás para frente.

As correlações entre as execuções ao vivo e as gravações são semelhantes aquelas encontradas entre o vinho e o cognac: ambos proveem da uva, porém são produtos completamente diferentes. Alguns preferem a transitoriedade, a novidade e o buquê dos vinhos, que mudam à cada gole; outros gostam do amadurecimento, da intensidade e do destilado refinamento dos cognacs, com seus ‘espíritos’ eternos; contudo, a maioria, dependendo da hora, ou da ocasião, aprecia os dois.


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  • Z, enquanto eu vejo por onde anda o texto mencionado por você, por favor ponha os dizeres abaixo ao pé do seu excelente 1925 - "Ouverdubbing", lá no "Paulistando". Trata-se de uma "Entrevista" não acabada que ando a pensar não concluir. Mas penso que faz par com sua matéria. Holbein.

ENTREVISTA XXVIII (De Mim por mim mesmo).

Pergunta: Finalmente, alta-fidelidade de quê?

R: De nada. O som musical replicado nas condições domésticas não é, e nem podia ser a alta-fidelidade da música de um concerto ao vivo. Mesmo porque este citado concerto (evento) não é um objeto, uma coisa que se possa replicar, ou reproduzir próximo do original; ou seja, fotografia em instantâneo ou cópia ou duplicata.

De mais a mais, como evento torna-se acontecimento (e desculpem a rima nada eufônica); quer dizer, o que aconteceu em determinado dia e hora circunstanciais se não poderá repetir: por isso que o dia passou, é pretérito, e até hoje nunca houve um dia igual a outro; visto que os confluentes são sempre variáveis de momento a momento; por fim, um teatro é um teatro e uma sala caseira para a escuta de música é coisa completamente diferente.

Há, pois, o som musical das salas de concerto, ou estúdios de gravação, e existe o som musical doméstico produzido pela parafernália acústica eletrônica.

Na verdade, na verdade, sons próprios inda que um tanto semelhantes posto que os tons (a notação) são musicalmente iguais embora sonoramente diferentes. Um piano em sala de concerto não soará igual se o pusermos (o mesmo piano) na nossa sala de escuta doméstica. Ainda que os dois sons possam nos agradar.

Agradar-nos, eis a questão: e quer significar nos proporcionar prazer. Tanto em sala de concerto um dado som musical pode nos desagradar quanto em nossas salas domésticas, o disco do evento, agradar. E vice-versa.

- Uma coisa é uma coisa, e outra, completamente diferente, assim se expressou o locutor “manezim” da Ilha do Desterro ao comentar partida de futebol entre Avaí e Figueirense.

Disso inferimos: o tango mal dançado das grifes dos equipamentos e o samba do crioulo doido dos cabos de interligação não têm o propósito de nos oferecer a fiel replicação dos eventos originais; aliás, situação impossível de acontecer como acima foi demonstrado: “uma coisa é uma coisa, e outra completamente diferente.” 

Portanto, tanto tango quanto samba (eta! aliteração da peste!), um e outro ou ambos simultânea e conjuntamente o que nos pode “oferecer” é a oportunidade de excitar nossa memória. Pois toda música que ouvimos representa grande porção de memórias arquivadas, que são desarquivadas no córtex cerebral a partir das ondas sonoras que nos chegam através dos ouvidos; é assim que funciona o mecanismo da audição do som musical. Não há, portanto, a audição pura, o som pelo som; porque do circuito auditivo participa fortemente as memórias arquivadas. 

Memórias arquivadas que dão caráter ao som: prazeroso ou desprazível; agradável ou desagradável. [Há quem goste do horripilante som da Abertura 1812, de Tchaikovsky, “... que é frequentemente reorquestrada com o acréscimo de canhões...”, como... como o informa o verbete correspondente do Dicionário de Música Zahar.] Portanto, há quem goste da atroada dos canhões...

Aliás, estou a crer que o não gosto do som musical em sala quadrada, e pequena – o mais aprazível som doméstico que tive em 60 anos de audiofilia –, o não gosto antecipado desse som musical talvez se deva a memórias anteriores arquivadas. Preconceito de que também sofre o excelente som musical via fones de ouvido... “Coisa de pobre...” como cunhou o Primo Rico, personagem de Chico Anísio. 

6 comentários:

  1. Que prazer ler dois mestres quase que dialogando. Ainda bem que a intenção de ambos era a mesma. Fico imaginando um contra o outro. Seria um duleto a lá Galdalf X Saruman.
    Interessante como vários gurus da audiofilia estão seguindo por esse caminho, com pude ler em outro Planeta. Resta agora saber se os seguidores estão aprendendo alguma coisa.

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  2. Obrigado pelo comentário...

    Certamente não é um duelo, acho acho mais parecida com uma Sociedade dos Portadores do Anel (da qual você faz parte), contra os Cavaleiros da Trevas e das travas...

    Douglas

    Douglas

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  3. O Holbein e o Douglas insistem em dizer que não há paralelos entre música tocada em salas de concerto/estúdios, e reprodução doméstica. Ora, se uma música foi tocada e seu registro foi gravado sem manipulação alguma a culpa de não reproduzi-la exatamente como foi gravada é do usuário da cópia do registro que não soube utilizar os meios físico/eletrônicos adequados para isso. Existem milhares de gravações sem manipulação alguma. Vocês só falaram das gravações manipuladas. E de mais a mais, não raro é muito mais prazeiroso ouvir uma gravação, mesmo que manipulada (bem manipulada !!!), num ambiente doméstico com um sistema bem acertado, do que ao vivo.

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  4. O senhor anônimo cita que a gravação não é manipulada, ora, se é gravada, tem um longo caminho a percorrer entremeando microfones, cabos, mesa de gravação, suporte analógico ou digital, para ser reproduzida em casa, quando os equipamentos são distintos entre si. O "sistema de som" da minha casa é completamente diferente do sistema da casa do vizinho, mesmo que sejam as mídias iguais. A questão não é "qualidade" de som, mas "fidelidade" sonora, que não estão diretamente relacionadas, basta comparar o som de um violoncelo Eagle chinês com o Petúnia de Yo-Yo Ma, e fica isso claro como a água.

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  5. Felipe Mariano, se seu sistema é completamente diferente do sistema da casa do vizinho, então um dos dois é ruim demais. O Yo-Yo Ma tocará tão bem qualquer violoncelo, seja de que marca ou modelo forem. O talento fala mais alto do que o instrumento, sempre.

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    1. Não é questão de talento, mas de fidelidade sonora, qualidade. Você citou que "a culpa de não reproduzi-la exatamente como foi gravada é do usuário da cópia do registro que não soube utilizar os meios físico/eletrônicos adequados para isso" e também diz que o Yo-Yo Ma toca bem qualquer violoncelo que seja, então se ele toca um desses violoncelos de papelão, a culpa do mau som será dele que não soube utilizá-lo e não do instrumento ruim? Ele pode ter todo o talento, mas duvido que deixe de usar um violoncelo no mínimo excelente para fazer uma gravação "mexida" como o senhor diz.

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