Sempre surpreende como alguns livros chegam aos seus leitores. Parece que têm a candente capacidade de se tornar omnipresentes quando querem ser encontrados pela pessoa certa. Já contei como ’O Livro dos Cantares – She Keng’, uma vasta antologia de poesia chinesa, editada pelos Jesuítas Portugueses (Macau / 1979) colidiu comigo (< leia a crônica >). São tão malucos estes momentos que, deles, não se pode excluir nem a Sincronicidade de Jung, nem o emaranhamento quântico.
A manifestação do livro de contos fantásticos de Guy de
Maupassant também foi extraordinária, numa hora inesperada e
num lugar de desdobramentos, dimensões e desvãos mágicos.
O autor francês, um dos contistas mais
célebres da Literatura Ocidental, é influência declarada de vários ícones da
Literatura Gótica Clássica e do Gênero Weird.
O Cavalheiro de Providence, H.P. Lovecraft atribuía a ele a criação do Horror Cósmico (no decisivo conto ‘O Horla’), um dos pilares da Cultura Pop, da cinematografia de assombros e das HQs atuais. Cthulhus, Aliens, coisas assim.
O Cavalheiro de Providence, H.P. Lovecraft atribuía a ele a criação do Horror Cósmico (no decisivo conto ‘O Horla’), um dos pilares da Cultura Pop, da cinematografia de assombros e das HQs atuais. Cthulhus, Aliens, coisas assim.
No segundo semestre de 2015 andava entretido com um conto
envolvendo ‘O Horla’ e S. Paulo de 1870 (< Leia o conto >). O tema me ocorreu por causa da
estranheza de descobrir que S. Paulo – pequena cidade periférica nos meados do
século XIX – era personagem importante na recorrente história de Guy de Maupassant. Por isso queria
encontrar uma edição de bolso, bem traduzida, contendo mais contos fantásticos
do autor, para poder ler em trânsito.
Em setembro de 2015 foi passar duas semanas em
Portugal, comecei o tour em Porto, talvez por causa do vinho. No topo da lista
de pontos imperdíveis constava a Livraria
Lello & Irmão, famosa por duas coisas, qualquer uma delas
justificaria a visita: a) Desde 1906 funciona num inimaginável prédio de arquitetura
neogótica, com as estantes disposta em torno de uma extravagante escadaria de
madeira, contorcida e rebuscada, populada por bustos da literatura portuguesa.
b) Consta que foi frequentada por J.K. Rowling, mãe de Harry Potter, e que serviu
de modelo para a loja de feitiços ‘Floreios e Borrões’ e para as insanas
escadas de Hogwarts.
Vive sempre superlotada. Para se ressarcir da
invasão de turistas e compensar as compras escassas a livraria cobra uma
entrada de três euros por pessoa. Porém, o valor dos ingressos pode ser
descontado das despesas realizadas. Comprei duas entradas.
Foram muitas as subidas e descidas pela
mítica escadaria, maravilhamentos com a claraboia ilustrada e iluminada do teto e dezenas de fotografias antes do sossego. Só depois comecei a olhar as estantes. Num canto, na mais
baixa delas, perto do chão, caído de lado estava o livro que buscada há meses:
Guy de Maupassant, ‘O Horla e Outros Contos Fantásticos’. Único, talvez último, exemplar. Capa preta e prata, letras góticas serifadas, páginas verdes claras e
do tamanho ideal, cabia perfeitamente em qualquer dos bolsos de meus casacos.
Agarrei o livro como Gollum agarrou o anel e
não soltei mais. Na fila do caixa, à contragosto, estendi o livro para o atendente
– um Fernando Pessoa de 30 anos – junto com as entradas resgatáveis. O
gajo fez os cálculos, me olhou, mediu, viu o peso e disse:
“― Bela escolha. Compra astuta e medida. 5,85 Euros. Não posso dar troco
no ressarcimento de ingressos.” Agradeci duplamente orgulhoso.
Consultei o colofão. Editorial Estampa Ltda. Impresso
em 27 de janeiro de 1977. Era proprietário de um dos 3.200 exemplares do livro.
Me iludo acreditando que aquele exemplar ficou naquelas estantes quase 50 anos aguardando
minha visita.
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