segunda-feira, 16 de abril de 2018

Bolinhas de Gude e Sistema Solar


Antes de entrar na escola primária, sete anos, já jogava bolinha de gude. Naqueles tempos, de vizinhança amistosa e ruas de terra, era impossível evitar ou ignorar os ciclos das brincadeiras infantis: colecionar maços de cigarro e figurinhas, empinar pipas, rodar pião e jogar – muito - bolinha de gude. Foi por causa desta brincadeira que, quando a professora começou a explicar o Sistema Solar, ocorreu meu estalo cognitivo.

Dona Ana Maria (tive três ‘tias’ chamadas Ana Maria, foi uma delas) para ilustrar a matéria pendurou imagens dos nove planetas mais a Lua pela sala. Nos tempos pre-internéticos – de mais leituras e menos figuras - a única referência possível para compreender aquela nova maravilha: esferas imensas girando solenes e eternamente pelo espaço, eram as bolinhas de gude. Daí se estabeleceu para sempre, na minha cabeça, a correlação entre os astros e as 'bulicas'.

Desde então, do meu balde de bolinhas, de cada nova compra, de todas ‘bilocas’ ganhas nos jogos de rua, passei a separar aquelas que mais se pareciam com planetas. Tinha sub-coleções de uranos, netunos, jupiteres, martes... Todos os nove mais a Lua. Não deviam ser muito fiéis porque então as comparações eram feitas de poucas imagens, muita memória e imensa imaginação.

Quando descobria nas coleções dos outros garotos alguma ‘bolita’ planetária especial oferecia trocas insanas, três, cinco, sete, dez por aquele tesouro. Os amigos conheciam minha fraqueza e a exploravam impiedosamente. Por uma bolinha de gesso escuro, velha e esburacada que – aos meus olhos – parecia a Lua paguei 17 ‘berlindes’ comuns.

Como fã de gibis de aventuras espaciais – Flash Gordon, Buck Rogers – passava o ano inteiro curtindo o meu sistema solar pessoal e aguardando, ansioso, o começo do 'tempo' das bolinhas de gude. Aquelas tardes infinitas guardadas nas nossas lembranças de infância em que os jogos só terminavam quando faltava luz do sol. Era o tempo propício para jogar, negociar e aumentar minha coleção interplanetária.

No meu bairro as principais modalidades do jogo eram círculo, triângulo, estrela, boques e ‘palmo e seca’. Contudo, consultando o Google sobre ‘jogos de bolinhas de gude’ constata-se que a controvérsia é imensa, conturbada e indecidida. Entre as muitas alternativas mencionadas, apenas três alcançam algum consenso – circulo (dos gibis da Turma da Mônica), triângulo e estrela – apesar de sempre comportarem regras divergentes, nomes regionais e inumeráveis variantes. Talvez só seja possível estabelecer regras comuns dentro do mesmo bairro, vila ou rua.

Antes de encerrar estas reminiscências sobre as ‘balebas’ é importante registrar que existe um hiato nas minhas lembranças que muito me inquieta. Apesar das memórias serem, sempre, e cada vez mais, enganadoras e falazes, não me recordo de meninas participando dos nossos jogos de ‘búraca’. O problema é que as minhas amigas coetâneas garantem que eram exímias praticantes do jogo de bolinhas de gude. Todas reivindicam serem muito melhores do que os atrapalhados meninos. Das três uma: ou elas estão mentindo, ou estão me enganando, ou o problema e mais grave, vivo numa extravagante realidade paralela.


Sinônimos de 'bolinha de gude', segundo a Wikipédia:
berlinde, burca, burquinha, baleba, bila, biloca, bilosca, biroca, birosca,
bolita, boleba, bugalho, bulica, burica, cabeçulinha (pronunciada ‘cabiçulinha’),
carolo, clica, fubeca, guelas, peca (pronunciada ‘pêca’), peteca, pilica, pinica,
quilica, tilica e ximbra.



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6 comentários:

  1. Maravilhosa Crônica, Texto, seja qual for o nome!!!!
    Parabéns!!!👏👏👏👏👏👏

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  2. Maravilhosa Crônica, Texto, seja qual for o nome!!!!
    Parabéns!!!������������

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  3. Transcrito do Facebook
    LORENA HORTA - Maravilhosa Crônica, Texto, seja qual for o nome!!!!
    Parabéns!!!👏👏👏👏👏👏

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  4. AMEI!!!!!!!!!!!!!!!!!!! Texto genial fruto de muito talento e imaginação. Antes de entrar no ponto controverso, preciso destacar que Dona Ana Maria era uma Mestra com M maiúsculo, merecedora de muitos prêmios “professora nota 10”. Foi uma proeza dela ter despertado interesse e conseguido ensinar sobre planetas, valendo se de elementos do universo infantil, numa época em que tudo era mandado decorar. Quanto ao questionamento, particularmente acho que você tem amigas muito mentirosas, com o perdão da palavra! Tirando por mim (confesso guardar algumas bolinhas de gude, lindinhas por sinal, todas surrupiadas do meu irmão) lembro perfeitamente que os meninos jamais permitiram que nós, garotas, chegássemos nem perto da jogatina deles. Como todos sabem, aquela foi uma época de meninas bobocas no quesito enfrentamento, quando a palavra “empoderamento” nem existia no dicionário. Portanto, saiba que você não está caducando, pois lá atrás todas nós, quando escorraçadas pela molecada, íamos brincar de passar anel, ou de casinha, aliás bem longe pra não atrapalhar a farra deles. Por essa e outras, deixo aqui meu protesto, ainda que extremamente tardio.

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  5. Obrigado pela visita, Suely, e pelo voto a favor.

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