Sete
da manhã Rita já estava na ginecologista. Janice, uma velha amiga remanescente dos tempos dos
barzinhos, quando terminavam a semana ouvindo Hermann, o goliardo gorducho de Pinheiros, cantando Sampa – achavam – melhor do que Caetano.
As visitas tinham dois motivos: atualizar os exames e as conversas.
Tomavam café juntas num papo cíclico, jamais interrompido, namoros, trabalho,
idade, esperanças... Naquele dia uma frase se enroscou na cabeça de Rita:
“Não se preocupe, daqui dois
anos essa inquietude vai acabar, porque aí qualquer gravidez seria perigosa.
O
pedaço que incomodava era: ‘dois anos’.
No táxi se encolheu e ignorou a paisagem. Chegou 20 minutos
atrasada no evento sobre Qualidade de Vida. Continuou encolhida no fundo da
sala, o telão era um balão de história em quadrinhos contendo a frase: ‘dois anos’. De repente a foto de uma garotinha num balanço, coroada de flores e afogada de alegria – uma ilustração da palestra – perfurou a bolha de alheamento de Rita e ganhou sua completa atenção.
Uma
ideia avassaladora nasceu, ‘dois anos’ fecundou a foto da garotinha, um óvulo de vontade irrefreável reivindicava o direito de vir ao
mundo. Passou o resto do dia ensimesmada, chocando pensamentos. Dentro dela, no secreto pavilhão dos sonhos, um projeto foi iniciado com altíssima prioridade.
Mas tinha uma dificuldade, uma premissa pétrea jamais
verbalizada: filho só casando de branco e
com festa para a família. Sem negociação, suas convicções morais eram
mandatórias.
Em
casa, Rita entrou inteira no pavilhão dos desejos. Quem seria um bom pai? Pragmática, fez um
inventário da sua vida sentimental recente, uma lista sêxtupla, variada como cor de esmalte: médico, corretor, editor, dono de posto de gasolina, professor e
analista de sistemas. Uma classificação lógica, não deixou o coração votar. Agora só faltavam definir as estratégias de abordagens e as táticas de convencimento.
Tempo
perdido, Rita concluiu que não teria engenho nem arte para executar o plano. Sempre
temeu a convivência, a intimidade e, sobretudo, abrir o coração. Apesar do incentivo
da garotinha, relutava em abandonar sua concha. Pensou num pai de aluguel,
porém tinha regras rígidas: pai precisava
conviver com a filha, pelo menos nos primeiros anos. O pavilhão voltou para o estado de hibernação.
Rita
não dirigia, usava taxi. Ligava e o mesmo motorista, Oswaldo, vinha pegá-la. Era
cômodo, revisava a agenda durante o percurso. No banco detrás esticou as pernas e se
preparou para a longa travessia do dia. Repassou a louca lista da madrugada, seus
olhos vagabundeavam pelas ruas e praças do caminho e, de repente, pousaram na
nuca do motorista. Cabelo bem aparado, cabeleira negra desenhada a fio de
navalha, fragrância comportada de creme de barbear popular. Lembrou do amigo
desentendido: “homem tem que ter cheiro
de homem”. Sabia que os olhos eram verdes e o dono cuidadoso e discreto.
O
motorista anterior, quando aposentou, indicou Oswaldo. Era rápido, sem parecer
apressado, bastava dar o endereço e desencanar, ele sempre chegava ao destino. Rita
surtou. Porque não constava da lista? Relembrou a ficha: 43 anos, magro, elegante
e com uma romântica noiva falecida; era do Paraná e morava com a irmã casada. A
escolha científica do pai foi concluída durante o trajeto. Desceu do táxi acesa,
despediu-se afetuosamente, o pavilhão estava reaberto.
O
plano de ação tinha precedentes, duas vezes flagrou o pai potencial em
óbvio encantamento. No começo do verão estreou uma blusa liberal e um perfume
floral, percebeu o rapaz ajeitando o espelho, provocante, mexeu o braço e acrescentou
dois centímetros ao decote. Outra vez, numa saída noturna, desceu desfilando um
vestido azul-oceano que revelava as cultivadas curvas do corpo. Oswaldo saiu
para abrir a porta e saborear a cadência de seus passos. Marota, antecipou os movimentos
ondulantes guardados para o salão de baile. Não existia candidato melhor: poucos defeitos,
imenso potencial, idade certa e afortunadamente disponível.
Nenhuma história de amor começa sem um
pouco de mentira, os filmes
e novelas provam. A verdade é estéril, seca e sem poesia. No dia seguinte Rita desceu
mais cedo, precisava quebrar paradigmas, entrou no taxi pela porta da frente, junto
com um tsunami de perfume floral. O carro partiu, tímido e desajeitado.
“Posso pedir uma coisa? Um favor?” Arriscou enrouquecida.
Espanto!
“Meus
pais querem que eu case. Menti e disse que tinha alguém. Amanhã vou vê-los e
preciso de um noivo. Pensei que você poderia fingir e me ajudar.”
“Eu?
Seu Noivo?”
“Porque
não?”
A
frase seguinte era verdadeira, porém, de tanto ensaio, soou falsa.
“Não sei se poderia arranjar um
noivo melhor.”
Sábado, quando desceram
do carro, ela colocou o braço na cintura dele. Oswaldo derrapava no papel. O pai
não entendia nada e a mãe compreendia tudo. Na viagem de volta não se tocaram, mas
no portão o ‘noivo’ disse:
“Queria que fosse verdade.”
“Às vezes basta querer para
ser.”
Três
meses depois aconteceu o casamento, tinha um marido e um pai já consumado e confirmado, oito meses
e a garotinha nasceu. Lara, porque as fantasias eróticas de Rita eram com Omar
Sharif do Doutor Jivago.
Oswaldo
era feliz, parecia um leão reprodutor que, para surpresa da leoa, era bom de coito.
Todo dia, antes de sair e depois de voltar, passava longo tempo adorando a
filha, estourando de contentamento.
“Lita. Litinha princesinha do
papai.”
A
bebe parecia amá-lo tanto, mais que ela. Difícil admitir, sua obra prima, seu
projeto pessoal, preferia o pai.
Rita
cuidava de tudo, porém Oswaldo era participante, acompanhava os exames, acalentava
Lita nas noites insones, estava sempre disponível. Foi com orgulho que levou a
filha para a escolinha quando completou dois anos. A data era um marco decisivo
no cronograma de Rita, por isso, um mês depois da entrada no maternal, chamou
Oswaldo para conversar.
(“Conversar? Conversa
nunca é bom.” )
A
esposa recitou um texto decorado. Explicou que viveu tempo demais sozinha, não
se acostumava com outra pessoa perto; não sabia dividir, nem compartilhar sua
vida. Pediu para ele sair de casa, prometeu ajudá-lo se precisasse. Falava uma
língua desconhecida, o marido não entendeu nem questionou nada, apenas
perguntou despeitado:
“Vai cuidar bem de Lita?”
Não
respondeu. Seu script não previa falas desnecessárias. Podia fechar o pavilhão,
o ‘Projeto Mãe’ foi um sucesso. Porém registrou que ele nunca havia pronunciado
o nome da garota. Sempre ‘Lita’. Porque? Era Rita com voz de criança?
Cuidar
da carreira e da criança sozinha não era fácil. A vida de Rita precisou ser
reprogramada, coisas que adorava foram cortadas. Cada saída noturna era uma
operação complexa. E o futuro exigiria mais, novas atividades entrariam na
rotina da garota: balé, línguas, natação, festinhas, tardes de estudo.
Princesas dão trabalho.
Oswaldo
voltou para o Paraná, mas manteve rigorosamente as visitas mensais. No domingo
combinado chegava pontualmente nove horas – coisa de neurótico pensava Rita –
trazia sempre um presente, um boneco de príncipe. Lita esperava o pai ansiosamente.
Voltava exausta e dormia agarrada ao príncipe do dia. De manhã Rita acrescentava
um novo personagem à coleção. “Tanto príncipe
encantado e eu precisando de um cavaleiro andante.” Quando acabou a frase
tinha a solução para seus problemas, abriu de novo o pavilhão.
Na
visita seguinte, a rainha mãe e a princesinha azul aguardavam no portão.
“Posso ir?”
Oswaldo
pensou ‘não’, mas respondeu ‘sim’. Foram para um haras que criava pôneis. Durante
a viagem conversavam através da garota, radiante de ter mãe e pai juntos. Deixaram
a menina com as tias-vaqueiras e foram para a varanda onde podiam conversar e
vigiar a filha. Rita começou a falar, tinha sempre um discurso decorado:
“Tenho uma proposta
estranha.”
Nenhum
comentário, Oswaldo temia dialogar com Rita.
“Lita gosta mais de você
do que de mim. Merece, é um bom pai.”
Silêncio.
“Preciso de alguém para
me ajudar com Lita. Não vou dar conta sozinha. Mas não pode ser qualquer pessoa,
precisa ser você.”
Continuou
calado, desconhecia suas falas no script.
“Não quero reatar, quero
alguém para levar e buscar Lita nas suas atividades. Vai precisar sair muito: línguas,
dança, artes, esportes, tanta coisa. Preciso de alguém para acompanhar e cuidar
dela.”
Estranheza
demais para a cabeça de Oswaldo, precisava perguntar.
“Então como vai ser?”
“Topou”, pensou Rita. A proposta precisa ser
cativante e convincente, e, sobretudo, deixar espaço para negociação.
“Quero te contratar como
motorista de Lita, para levá-la aonde precisar. Não vou conseguir fazer isso
sozinha e só confio em você. Posso comprar um apartamento perto do meu, no
nome de Lita e para seu uso-fruto. Vai ver sua filha todos os dias, e vou ficar
mais sossegada.”
“Motorista de Lita? Não
precisa me pagar para passear com Lita!”
“Eu sei. Pode continuar
como taxista, mas gostaria de ajudar, só quero que a Lita tenha total
prioridade.”
“E seu estiver numa
corrida e a Lita precisar de mim?”
“Mas emergências o Rildo pode ajudar. Hoje ele
me atende.”
“Sei disso.”
Ficaram
em silêncio, vendo Lita cavalgar no menor dos pôneis. A Interrogação de Oswaldo foi inusitada.
“Posso fazer uma
pergunta? Porque agora chama a menina de Lita?”
“Ela não aceita Lara. Nem
responde, diz que não é ela.”
Falou num tom de um pai orgulhoso: “Aceito a
proposta, mas com duas condições.”
“Quais?”
“Não faço nenhum serviço
para você sozinha.”
“Tá.”
Oswaldo
riu confiante e enigmático.
“Quero que você mude, oficialmente,
no cartório, o nome dela para Lita. Sei que agora pode.”
“Por que isso?”
“Porque quero.”
Rita
não entendeu, seriam resquícios de amor por ela? Ou capricho e provocação? Era
um pouco absurdo, já tinha o sobrenome dele. Mas afinal, Lara nunca existiu (só
como a garota no balanço), até a filha recusava o nome. Era um ponto bobo, aceitável,
porque o benefício dele na vida delas seria imenso.
“Concordo.”
Um
sorriso ambíguo brotou nos lábios de Oswaldo, meio de satisfação, meio de melancolia. Chamava a menina de Lita por causa de Julita, a noiva do Paraná que
morreu grávida de uma menina, cinco meses antes do casamento.
Muito bom, Douglas. Adorei! Quando você vai nos presentear com um outro? Aguardo ansiosamente. Solange
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