A Audiofilia, como todas as coisas do mundo, tem duas naturezas,
uma ‘física’ e outra ‘mental’. São metades
que não podem ser soldadas, e não podem ser separadas.
Nosso hobby também é atravessado pela grande tese da Filosofia
moderna, colocada por Descartes e ainda não superada. A cisão entre a mente e o corpo, que até hoje incomoda várias ciências, como, por exemplo, a
AI-Inteligência Artificial.
Nas eternas discussões que avivam os fóruns de Audiofilia
sempre aparecem argumentos de base ‘física’
querendo explicar coisas ‘mentais’, e
vice versa. Impossível, as metades estão completamente embricadas, contudo
são intrinsecamente diferentes. Frases como: ‘o som ficou
infinitamente melhor’; ‘a diferença não aparece no
osciloscópio’; ‘o palco ficou mais amplo,
arejado’; ‘não existe nenhuma evidência
científica dessa opinião’; só têm sentido na sua própria metade do
problema. Ado, ado, ado / cada um no seu quadrado.
Baruch de Espinosa apresentou uma intrigante formulação para esta questão, propôs que todas as coisas – inclusive a Audiofilia – podem ser
concebidas tanto pelo atributo ‘fisico’,
quando pelo atributo ‘mental’. Roger
Scruton (Grandes Filósofos: Espinosa
– Editora Unesp), um divulgador do
filósofo, ilustrou brilhantemente essa ambiguidade usando a Música como exemplo,
numa linguagem quase audiófila.
Primeiro, para brincar com a ideia, vamos expor a questão com a visão dos equipamentófilos, científica, amarela
e apolínea:
“Considere o seguinte exemplo.
Quando ouço música, ouço uma sequencia de sons, que se distinguem pela sua
agudeza, pelo seu timbre e pela sua duração, que são eventos do mundo físico.
Um físico pode dar uma descrição completa desses sons como vibrações do ar e
dizer exatamente o que eles são em relação a ‘movimento e repouso’ (para usar
uma terminologia de Espinosa) das coisas do espaço. E é isso que ouço quando
escuto a música.”
Agora a fala dos musicófilos,
floreada, azul e dionisíaca:
“Mas eu também ouço esse sons de uma
outra maneira, uma maneira que não é captada pela descrição física. Ouço uma
melodia que começa na primeira nota, cresce por uma dimensão invisível e
diminui novamente. Uma nota responde à outra nota nessa melodia, assim como um
pensamento responde a outro pensamento na consciência. Um movimento musical
continua pelo espaço musical, por meio da sequencia, embora nenhum som se mova
no espaço descrito pelo físico.”
O curioso é que ambos, o equipamentófilo
e o musicófilo, estão falando da
mesma entidade e do mesmo fenômeno, incendiados pela mesma paixão.
“Um crítico, ao descrever a
música, esta descrevendo os mesmos objetos que o físico que descreve os sons. No entanto, ele está interpretando-os no âmbito mental, vendo a intenção que anima a linha musical e leva
a melodia até sua conclusão lógica. A música não é separada dos sons.”
Prosaicamente, tudo é apenas e tão somente, dito de forma simples:
movimentação do ar. Entretanto todo
audiófilo dedica incontáveis horas ao seu setup (e, às vezes, muito dinheiro) para
ouvir o ar que se move da melhor maneira possível, curtindo e aprimorando
seu sistema. Que tipo de Graal eles buscam? Certamente, por caminhos
diferentes, todos procuram alguma coisa transcendental e intangível como a “...
a música [perfeita, que] é tão importante para nós: [porque]
ela fornece um repentino insight da
alma do mundo. Esses raros vislumbres da alma das coisas torna-nos capaz de
entender o que seria ver o mundo como Deus o vê, e conhece-lo não somente como
extensão [Fisica], mas também como pensamento [Estética].”
Aliás, o sentido inverso também é verdadeiro, ouvir Música
ajuda a entender a Física, é previsível lembrar que o cientista Einstein e o
detetive Sherlock Holmes tocavam violino, o primeiro para entender melhor o universo,
o segundo para compreender melhor as mentes criminosas.
***** ***** *****
Para avançar mais na questão e cobrir o largo arco de
interesses que a Audiofilia tangencia vai ser preciso se despedir de Espinosa e
mudar de guia. Contratar Martin Heidegger – um dos 5+ pensadores do século XX –
para explicar como a coisa toda funciona. Porque a Audiofilia é um amálgama complexo,
composto de Arte, Ciência (e Tecnologia), Filosofia e Religião.
Sobre o tema, recomendo fortemente um artigo do Dr. Victor
Mirol, com uma abordagem rigorosamente científica, que quase esgota o assunto.
Foi publicado duas vezes, 2002 e 2011, na Áudio
Vídeo Magazine – O áudio entre a ciência, a arte e a filosofia. Que, até pouco tempo atrás, estava disponível na
Internet, Aqui logoseletronico
Na Filosofia de Heidegger existem quatro formas de conhecer
a realidade: Arte, Ciência (e Tecnologia), Filosofia e Religião. Apesar de
todas as quatro abordagens terem em comum o mesmo objeto de estudo – o conjunto
de corpos e entidades do mundo – cada uma delas é auto-suficiente, isolada e
fechada em si mesma. Ou seja, todos os fenômenos podem ser completamente explicados
dentro dos limites de cada uma delas, sem necessitar de nenhuma ajuda externa.
São quatro discursos diferentes, completos e não comunicantes que podem descrever
toda a realidade física e mental. Porém, as verdades, princípios ou axiomas dos
discursos não são intercambiáveis, cada ‘saber’ só vale para seu próprio
universo.
Assim podemos imaginar os mais estranhos paralelismos: a Teoria
da Relatividade e os relógios deformados de Dali; o Cubismo e o Princípio da
Incerteza; a Física Quântica e o Yan-Yang; o deus monoteísta e o big-bang; o heliocentrismo
e a Razão Crítica de Kant. A lista é infinita, mas nada dela vale como prova, são
apenas exóticas e interessantes analogias ou sincronicidades junguianas.
Neste contexto a Audiofilia é um hibridismo que comporta
todos os saberes, tem um pouco de Arte, Ciência, Filosofia e Religião.
Semelhante a alguns hobbies como enofilia, cozinha gourmet e certos tipos de
colecionismo; e similar a algumas pseudociências como a Astrologia, a Ufologia,
a Grafologia e outras. Ou seja, se aproveita das quatro formas clássicas de
conhecimento para explorar os vãos que separam uma das outras.
Como hobby, usa os quatro saberes para sondar os limites
poucos estudados das áreas que lhe dão suporte, avançando até a fronteira
final, para se deliciar ouvindo o que nenhum homem jamais ouviu.
Enquanto pseudociência, acumula vasta informação e volumes incomensuráveis
de conhecimentos específicos, práticos e empíricos, para, junto com crenças, apostas
e algumas teorias, perseguir a qualidade no meio da quantidade e variedade.
Geralmente por tentativa e erro. Como metodologia é uma estratégia interessante.
Contudo, para organizar e validar este cabedal de informações armazenadas, a Audiofilia rejeita
qualquer diretriz rígida: seja o método da Ciência; a coerência da Filosofia; a verdade
revelada da Religião; ou a supremacia estética da Arte.
Considerando tudo, não é fácil a vida do audiófilo, é
preciso muito esforço para se reinventar e se atualizar todo dia. Sobretudo
pensar muito, mas muito mesmo, antes do próximo upgrade...
“Porque nada custa
ir além dos limites
quando os palpites
valem mais que a Ciência.”
26 – Dilema da Porcelana
( Livro 64 Dilemas / Douglas Bock)
“Porque nada custa
ir além dos limites
quando os palpites
valem mais que a Ciência.”
26 – Dilema da Porcelana
( Livro 64 Dilemas / Douglas Bock)
Mais um belo texto! Parabéns Z!
ResponderExcluirAbraços
Miro
Miro, é bom saber que nos leram.
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