quarta-feira, 29 de maio de 2013

O AUDIÓFILO QUE ESTUDAVA ESPINOSA


A Audiofilia, como todas as coisas do mundo, tem duas naturezas, uma ‘física’ e outra ‘mental’. São metades que não podem ser soldadas, e não podem ser separadas.

Nosso hobby também é atravessado pela grande tese da Filosofia moderna, colocada por Descartes e ainda não superada. A cisão entre a mente e o corpo, que até hoje incomoda várias ciências, como, por exemplo, a AI-Inteligência Artificial.

Nas eternas discussões que avivam os fóruns de Audiofilia sempre aparecem argumentos de base ‘física’ querendo explicar coisas ‘mentais’, e vice versa. Impossível, as metades estão completamente embricadas, contudo são intrinsecamente diferentes. Frases como: ‘o som ficou infinitamente melhor’; ‘a diferença não aparece no osciloscópio’; ‘o palco ficou mais amplo, arejado’; ‘não existe nenhuma evidência científica dessa opinião’; só têm sentido na sua própria metade do problema. Ado, ado, ado / cada um no seu quadrado.


Baruch de Espinosa apresentou uma intrigante formulação para esta questão, propôs que todas as coisas – inclusive a Audiofilia – podem ser concebidas tanto pelo atributo ‘fisico’, quando pelo atributo ‘mental’. Roger Scruton (Grandes Filósofos: Espinosa Editora Unesp), um divulgador do filósofo, ilustrou brilhantemente essa ambiguidade usando a Música como exemplo, numa linguagem quase audiófila.

Primeiro, para brincar com a ideia, vamos expor a questão com a visão dos equipamentófilos, científica, amarela e apolínea:

“Considere o seguinte exemplo. Quando ouço música, ouço uma sequencia de sons, que se distinguem pela sua agudeza, pelo seu timbre e pela sua duração, que são eventos do mundo físico. Um físico pode dar uma descrição completa desses sons como vibrações do ar e dizer exatamente o que eles são em relação a ‘movimento e repouso’ (para usar uma terminologia de Espinosa) das coisas do espaço. E é isso que ouço quando escuto a música.”

Agora a fala dos musicófilos, floreada, azul e dionisíaca:

“Mas eu também ouço esse sons de uma outra maneira, uma maneira que não é captada pela descrição física. Ouço uma melodia que começa na primeira nota, cresce por uma dimensão invisível e diminui novamente. Uma nota responde à outra nota nessa melodia, assim como um pensamento responde a outro pensamento na consciência. Um movimento musical continua pelo espaço musical, por meio da sequencia, embora nenhum som se mova no espaço descrito pelo físico.”

O curioso é que ambos, o equipamentófilo e o musicófilo, estão falando da mesma entidade e do mesmo fenômeno, incendiados pela mesma paixão.

“Um crítico, ao descrever a música, esta descrevendo os mesmos objetos que o físico que descreve os sons. No entanto, ele está interpretando-os no âmbito mental, vendo a intenção que anima a linha musical e leva a melodia até sua conclusão lógica. A música não é separada dos sons.”

Prosaicamente, tudo é apenas e tão somente, dito de forma simples: movimentação do ar. Entretanto todo audiófilo dedica incontáveis horas ao seu setup (e, às vezes, muito dinheiro) para ouvir o ar que se move da melhor maneira possível, curtindo e aprimorando seu sistema. Que tipo de Graal eles buscam? Certamente, por caminhos diferentes, todos procuram alguma coisa transcendental e intangível como a “... a música [perfeita, que] é tão importante para nós: [porque] ela fornece um repentino insight da alma do mundo. Esses raros vislumbres da alma das coisas torna-nos capaz de entender o que seria ver o mundo como Deus o vê, e conhece-lo não somente como extensão [Fisica], mas também como pensamento [Estética].”

Aliás, o sentido inverso também é verdadeiro, ouvir Música ajuda a entender a Física, é previsível lembrar que o cientista Einstein e o detetive Sherlock Holmes tocavam violino, o primeiro para entender melhor o universo, o segundo para compreender melhor as mentes criminosas.

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Para avançar mais na questão e cobrir o largo arco de interesses que a Audiofilia tangencia vai ser preciso se despedir de Espinosa e mudar de guia. Contratar Martin Heidegger – um dos 5+ pensadores do século XX – para explicar como a coisa toda funciona. Porque a Audiofilia é um amálgama complexo, composto de Arte, Ciência (e Tecnologia), Filosofia e Religião.

Sobre o tema, recomendo fortemente um artigo do Dr. Victor Mirol, com uma abordagem rigorosamente científica, que quase esgota o assunto. Foi publicado duas vezes, 2002 e 2011, na Áudio Vídeo MagazineO áudio entre a ciência, a arte e a filosofia. Que, até pouco tempo atrás, estava disponível na Internet, Aqui logoseletronico 

Na Filosofia de Heidegger existem quatro formas de conhecer a realidade: Arte, Ciência (e Tecnologia), Filosofia e Religião. Apesar de todas as quatro abordagens terem em comum o mesmo objeto de estudo – o conjunto de corpos e entidades do mundo – cada uma delas é auto-suficiente, isolada e fechada em si mesma. Ou seja, todos os fenômenos podem ser completamente explicados dentro dos limites de cada uma delas, sem necessitar de nenhuma ajuda externa. São quatro discursos diferentes, completos e não comunicantes que podem descrever toda a realidade física e mental. Porém, as verdades, princípios ou axiomas dos discursos não são intercambiáveis, cada ‘saber’ só vale para seu próprio universo.

Assim podemos imaginar os mais estranhos paralelismos: a Teoria da Relatividade e os relógios deformados de Dali; o Cubismo e o Princípio da Incerteza; a Física Quântica e o Yan-Yang; o deus monoteísta e o big-bang; o heliocentrismo e a Razão Crítica de Kant. A lista é infinita, mas nada dela vale como prova, são apenas exóticas e interessantes analogias ou sincronicidades junguianas.

Neste contexto a Audiofilia é um hibridismo que comporta todos os saberes, tem um pouco de Arte, Ciência, Filosofia e Religião. Semelhante a alguns hobbies como enofilia, cozinha gourmet e certos tipos de colecionismo; e similar a algumas pseudociências como a Astrologia, a Ufologia, a Grafologia e outras. Ou seja, se aproveita das quatro formas clássicas de conhecimento para explorar os vãos que separam uma das outras.

Como hobby, usa os quatro saberes para sondar os limites poucos estudados das áreas que lhe dão suporte, avançando até a fronteira final, para se deliciar ouvindo o que nenhum homem jamais ouviu.

Enquanto pseudociência, acumula vasta informação e volumes incomensuráveis de conhecimentos específicos, práticos e empíricos, para, junto com crenças, apostas e algumas teorias, perseguir a qualidade no meio da quantidade e variedade. Geralmente por tentativa e erro. Como metodologia é uma estratégia interessante. Contudo, para organizar e validar este cabedal de informações armazenadas, a Audiofilia rejeita qualquer diretriz rígida: seja o método  da Ciência; a coerência da Filosofia; a verdade revelada da Religião; ou a supremacia estética da Arte.

Considerando tudo, não é fácil a vida do audiófilo, é preciso muito esforço para se reinventar e se atualizar todo dia. Sobretudo pensar muito, mas muito mesmo, antes do próximo upgrade...

“Porque nada custa
ir além dos limites
quando os palpites
valem mais que a Ciência.”

26 – Dilema da Porcelana
( Livro 64 Dilemas / Douglas Bock)

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