Sou cientista, não escritor, revisei este texto muitas vezes, mas ainda está repleto de estranhezas. Porque foi escrito para uma leitora única e especial que entenderá os excessos, atos falhos e meias palavras que aparecem nesta confissão. Posso garantir que é uma tentativa honesta e verdadeira de relatar a busca pela mulher perfeita.
Meu nome é Edjo José Kuzkir. Com 37 anos acabei o
pós-doutoramento em Metalurgia, com uma tese sobre têmperas de aço. Só então
considerei encerradas a adolescência e vida de estudante. A aprovação com
louvor da tese foi meu rito de passagem. Era hora de iniciar
o grande projeto da vida adulta: encontrar a esposa ressonhada.
Nós poloneses temos nosso
temperamento nacional: os russos são tristes, os alemães racionais e os polacos
precavidos. Sempre nos preparamos em demasia para qualquer coisa. E o casamento
é a escolha mais séria da vida. Tive casos esparsos e relações efêmeras, sem
nunca me precipitar, porque sonhava com uma parceira perfeita esperando por
mim. Uma mulher mágica que durante anos fui idealizando dentro da mente. Ainda
persisto nesta quimera, sem ela serei incompleto e infeliz.
Pelo que
lembro esta idiopatia começou quando assisti a ópera Flauta
Mágica. Me eletrificou o amor de Pamino e Tamina, O príncipe se apaixona pela
princesa quando vê um camafeu com o rosto dela pintado. E ela, ao saber que é amada, começa a amá-lo
imediatamente. Me encantou essa simpleza e reciprocidade.
Desde garoto tinha a intuição de que o amor é obra do destino, um inexplicável emaranhamento
quântico que liga duas pessoas de forma misteriosa e inquebrantável. Portanto
devia existir uma mulher especial aguardando por mim. Passei anos olhando
fotografias e rostos tentando descobrir a parceira prometida, entretanto, o
primeiro vislumbre que tive da senhora das minhas fantasias aconteceu numa
música dos Beatles.
Quando ouvi Norwegian
Wood fiquei baratinado. A musa de McCartney era outra, mas os versos descreviam a amada que habitava meus delírios. A moça não tinha cadeiras, mas a gente sentava no tapete e ficava
confortável. Ela mandava no tempo, podia esticar e encolher as horas à vontade.
Falava do que nos faltava, do que precisávamos e do que nos completava; transformava
os momentos compartilhados em hiatos de felicidade eterna. Todavia, Paul, já no
título, alertava: “this bird has
flown”.
Era preciso ficar esperto neste jogo dúbio, a gente nunca sabe se conquista ou é conquistado: “I once had a girl, / or should I say, she once had me”. Assim, quando acontecer o encontro, mesmo se a amada não reconhecer de imediato que somos o parceiro ideal, é necessário insistir, perseverar. Porque, se perdermos a chance, o caos se instalará na alma e será preciso cometer a loucura de queimar a casa inteira de madeira norueguesa.
Era preciso ficar esperto neste jogo dúbio, a gente nunca sabe se conquista ou é conquistado: “I once had a girl, / or should I say, she once had me”. Assim, quando acontecer o encontro, mesmo se a amada não reconhecer de imediato que somos o parceiro ideal, é necessário insistir, perseverar. Porque, se perdermos a chance, o caos se instalará na alma e será preciso cometer a loucura de queimar a casa inteira de madeira norueguesa.
Ouvi essa
música milhares de vezes, conhecia perfeitamente os gostos e o jeito da garota.
Adivinhava seus desejos e entendia suas reações, contudo, por mais que
tentasse, não conseguia visualizar seu rosto. Às vezes nas ruas, nos shoppings,
nas aulas e palestras, achava ter encontrado a outra metade que me complementaria, porém um
sorriso, um gesto, um movimento indevido, mostravam que estava enganado. Nunca
desisti dos meus sonhos, até que um dia, dez anos atrás, consegui enfim ver sua
face. Foi um momento epifânico. E, melhor ainda, do jeito que a conheci, podia
ficar olhando seu rosto o tempo que quisesse.
Durante a longa vida de estudante e pesquisador, quanto as coisas fugiam do controle, saia para
caminhar pela cidade. Um dia descobri o esconderijo ideal pata meditar,
confortável e fora do tempo: os salões do MASP. Aos poucos virou uma
necessidade orgânica, uma vez por mês fugia para o museu, passava a tarde
refletindo e sincronizando minh'alma com o ritmo do mundo. Porque com a
rotina diária ficamos descompassados dos nossos sonhos. Numa dessas visitas
sentei defronte o óleo de Piero di Cosimo, a Virgem
com o Menino, São João Batista Criança e um Anjo. Um
quadro redondo, grande, de mais de 500 anos, quando olhei o rosto da virgem reconheci imediatamente a companheira prometida. Uma moça loira, linda e delicada; de rosto oval,
sábio e sereno. Infinitamente paciente. Merecedora de toda paixão que trazia acumulada dentro da alma.
As feições das Madonas variam vastamente,
dependem das modelos selecionadas pelos pintores. Não sei se a escolha de Piero
di Cosimo foi guiada pelo destino ou pelo acaso, mas registrou, através de uma eventual antepassada, os traços de minha amada. Agora eu sabia precisamente quem
devia procurar.
A medida que me familiarizava com o quadro e estudava
sua história fui detectando sinais e prenúncios óbvios. A composição é meio
defasada, antecipa o modernismo rude e lembra as paisagens devastadas e oníricas de Dalí. Exibe um pássaro caçando uma lagarta, tema insano
numa alegoria da Madona. No entanto, a figura mais intrigante é o anjo que
acompanha Maria. Furtivo, despropositado e desajeitado, colhendo flores numa
perpétua adoração da Virgem. Tem cabelos longos, loiros e escorridos, olhos um
pouco esbugalhados, e a Santa o ignora docemente. Profeticamente se parece comigo,
de corpo e alma.
Meus pais são católicos praticantes, com a
indicação do Papa João Paulo II todos os polacos, inclusive eu, se sentiram um
pouco o povo eleito. Assim, encontrar o rosto da amada numa imagem de
Nossa Senhora quinhentista foi um choque, uma revelação e uma premonição.
Confirmou minha intuição, os casais, como explicou Platão, são seres divididos
que se procuram pela vida, e pelo tempo afora.
A busca metódica da Madona de Norwegian Wood começou logo depois que vi a pintura.
Passei a frequentar as redes sociais (principalmente as que exibiam fotos),
festas, baladas, casamentos e aniversários. Aceitava qualquer convite e
procurava eventos de todos os tipos. Encontrei algumas moças que se pareciam
com, ou lembravam, a Madona, porém quando me aproximava para conversar ficava
decepcionado. Uma vez, num jantar de engenheiros, o acaso me colocou ao lado de
uma criatura excepcional, conversamos a noite inteira, falamos e rimos de tudo,
inclusive de nós mesmos, só nos separamos de manhã. A mulher mais envolvente e
carinhosa que conheci. Belíssima, estrela de novela das oito. Maldisse Piero di Cosimo, porque Tânia era morena-jambo e tinha cabelos castanho-escuros.
Uma noite, descendo a Rua Bela Cintra, parei no farol
da Rua Fernando de Albuquerque. Na esquina três moças procuravam clientes. Estava
perto da calçada, pude olhar direito, fiquei estarrecido, uma delas era
idêntica à Madona do MASP. Dei três voltar para confirmar, e, para pensar melhor, fiz os retornos cada vez mais longe. Nunca, em nenhuma das variantes imaginadas nas noites ociosas,
considerei a hipótese da minha prometida ser uma prostituta. Na segunda passagem
já tinham me notado, comentavam rindo entre si. Estava transpassado, porém me lembrei
do aviso de Paul McCartney: é recomendável insistir, perseverar;
porque senão seria preciso queimar toda a bela madeira norueguesa. Revolvi conversar com a Madona.
Entrou no
carro – roupa escassa e brilhante, excessivamente perfumada – e me conduziu
para um hotelzinho na Bela Vista. Típico, sem letreiro, apenas com o contorno
desenhado a neon. No caminho, dengosa, esticou o braço para acariciar minha
virilha, me senti no filme errado, afastei a mão. Entramos no quarto e ela começou
a se despir sensualmente, pedi para parar.
“Então o que quer fazer?”
“Conversar.”
Pela reação percebi que não era uma proposta incomum. Recostou na cama, de calcinha e
soutien pretos. Peguei a única cadeira disponível e sentei com o encosto contra
o peito, para apreciar melhor a cena. Era fantástica, lasciva, herética e
linda. Parecia que estava vendo a sacrossanta Madona de Piero di Cosimo
recriada por Goya, numa transição entre a La Maja Desnuda e La Maja Vestida. Contei para a garota a história
inteira, excitado com a visão e culpado porque estava gostando.
“Mas, enfim, o que você quer comigo?”
“Namorar, casar...”
Ela riu, como
uma menina boazinha riria para um ET perdido numa conexão intergalática.
“Não quero casar! Fugi de Curitiba para
evitar o tédio da vida de casada.”
Trilhava uma
rota maluca, preparado para tudo, menos para receber um não da minha noiva presuntiva.
Ela percebeu a desilusão desenhada no meu rosto.
“Você é doido de pau! Precisa se tratar.”
De repente
sorriu resplandecente, seu rosto se iluminou, gloriosa como uma santa num
altar. A aventura louca daquela noite, a soma da vida inteira, valeu por aquele sorriso.
“Vou te dar o endereço de uma
terapeuta, devia procurá-la. Não outra. Acho que somente esta vai poder tratar
você com sucesso.”
Tirou da
bolsa um cartãozinho e escreveu alguma coisa. Peguei o cartão, de um lado,
manuscrito, 'Dra. Flora – Psicoterapeuta' e um telefone; do outro lado, impresso em dourado, 'Circe' e um
celular.
Obedeci a Madona,
marquei consulta para uma quinta-feira, cinco da tarde. Era na Avenida
Indianópolis, cheguei pontualmente, quando você abriu a porta fiquei perplexo,
estupefato, aplastado. Primeiro pensei que fosse uma brincadeira, uma fantasia
erótica, Circe vestida de médica; mas você parecia mais nova, seu rosto era
mais suave. Depois, vendo o consultório correto e profissional, imaginei
uma prima. Porém, conhecia bem demais aquele rosto, nem parentes têm traços tão
semelhantes. Por fim conclui que eram irmãs gêmeas.
Como deve se lembrar,
no começo fiquei catatônico, não conseguia dizer nada. Muito tempo depois
balbuciei alguma coisa, passei a falar engrolado, atropelado demais, sem concatenar
as ideias. Frases truncadas, repetidas, cheias de exclamações e interjeições. Sem começar a conversa acabou.
Você foi
magnífica, meiga, perfeita e absolutamente profissional. Disse que não iria
cobrar a consulta e marcou uma nova sessão para a próxima quinta-feira. Pediu,
orientou, sugeriu que eu escrevesse a história da minha vida, desde as primeiras lembranças. Explicou que ajudaria a ordenar as ideias e romper o bloqueio da fala. Achei correto
ter insistido para não procura-la antes da próxima sessão.
Repensando o
encontro, desconfio que sabia quase tudo sobre mim, porque já havia contado as desventuras completas da busca insensata para Circe – com ela não fiquei travado – que deve ter
repetido tudo para você, inclusive com comentários. Espero que tenham sido
simpáticos.
Simplesmente, adorável!!!
ResponderExcluirObrigado pela visita e pelo comentário Maria Luíza Faria
ResponderExcluirUm conto maravilhosamente tentador.
ResponderExcluirPrende o leitor, perfeito!
Aplausos!
Obrigado pelo comentário Suely Sette, é um conto de trama densa.
ResponderExcluirFantástico e envolvente!
ResponderExcluirObrigado Vera, gostei do superlativo, é quase um colagem das coisas que gosto.
ResponderExcluirAll the lonely people/Where do they all come from?/All the lonely people/Where do they all belong?... Minha estranha e fugaz Circe- ou seria Berenice, por seus longos cabelos - era exclusivamente da Praça Roosevelt. // Adoro contos que atraem histórias dos anos em que meu cabelo ia pelos ombros!
ResponderExcluirFernando Marchini Dias, as memórias algumas vezes são fardos, mas outras são velas que nos ajudam a navegar pelo passado.
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