A maioria das pessoas, diante da
Música Clássica, tem um sentimento dúbio, misto de medo, respeito e fascínio;
como um pedestre olhando para a imensidão do Himalaia. Sabem que existem picos,
vales, terraços e paredões deslumbrantes, porém, infelizmente, essas maravilhas
estão interditadas, são distantes e inacessíveis. Deve pintar também alguma frustração,
porque esse universo sonoro – inóspito e misterioso – é parte importante do espirito
humano, não existe cultura, mesmo a mais rudimentar, que não tenha manifestações
musicais. Como diziam os pitagóricos “tudo
é música”. É a linguagem das almas, inata e ao alcance de qualquer pessoa.
Um grupo carioca, desde 1944, decidiu desbravar esse território elevado e passou a promover audições semanais ou quinzenais para conhecer ou revisitar as rotas e picos da Música Clássica. São os mardistas – membros do Mardi Musical (veja mais aqui>>>) – um bando de amigos que já promoveu mais de 3.350 encontros.
Escalada impressionante, deveria constar no Guinness. Convidado, pela Andrea Cruz e Silvio Pereira (da Audiopax), participei da reunião N. 3351, comemorativa dos 70 anos de atividades ininterruptas. Talvez seja interessante contar como as coisas acontecem, porque pode inspirar novas expedições exploratórias.
Sobre detalhes da história do
grupo, dos anfitriões, dos costumes e vocabulário já falei num artigo anterior
(link acima), agora o foco são as rotinas e regras dos encontros. Cada audição
dura entre uma e duas horas, tem um número variado de peças e contempla,
ecleticamente, todo o repertório clássico. Considerando as 3351 reuniões
realizadas, dá para estimar que o número de obras ouvidas alcança 20.000, algumas
mais de uma vez, e cobre grande parte do acervo erudito. Como cada programa é
minuciosamente explicado e comentado pelo anfitrião, funciona quase como um
curso de introdução, ou especialização, nos mistérios da Musica Erudita. Trata-se
de um conjunto de amigos, portanto a troca de informações é cordial e os
novatos são bem acolhidos, auxiliados e incentivados durante toda a caminhada.
Um viés interessante que agita o
convívio quinzenal dos mardistas é o concurso que instituíram para
eleger a melhor música executada no ano. Os critérios de escolha são precisos e
protocolares, estabelecidos em estatutos, contudo terminam – como
sempre – em
festa, homenageando o anfitrião que apresentou a peça vencedora. Chama-se Prêmio
Roma, uma alusão malandra
ao Prix de Rome
(bolsa de estudos em Roma, para jovens artistas promissores, criada pela França
em 1663). Debussy ganhou, mas fugiu no meio. O troféu, ‘cariocamente’, é a Oscarita, brincando com o Oscar com o ator
e comediante famoso.
O prêmio é uma excelente sacada e
traz inúmeros benefícios: (a) ajuda os mardistas a relembrarem, compararem e
avaliarem as músicas ouvidas, exercitando o senso crítico; (b) ao longo do
tempo estabelece padrões e parâmetros úteis para formação e aprimoramento do
gosto musical; (c) cria um ‘calendário’ anual lúdico, que serve para contextualizar,
pautar e orientar as reuniões; (d) estimula a disputa, mas privilegia a
camaradagem, porque tudo converge para uma festa anual de premiação e congraçamento,
onde são atribuídos diversos prêmios (Jonas Arruda, Beethoven,
Cantata, Bach-Bandeira).
Todo mundo acaba feliz.
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O processo de votação é intrigante
e curioso. Funciona bem, foi discutido e aperfeiçoado durante 70 anos.
II - A partir da segunda sessão do ano mardistico, e a cada encontro, todo mardista (com um índice de assiduidade aceitável) tem direito de votar e escolher as duas melhores peças da audição.
III - A dupla selecionada
– desde que a segunda tenha mais da metade dos votos da primeira – passa a
compor a lista das peças candidatas
Fig. 1 - Lista de Votação Anual |
V - A trinca indicada vai para um Mardi especial (de decisão) onde as peças são novamente executadas para subsidiar uma votação final e ao vivo. Tudo está previsto e documentado, inclusive os vários critérios de desempate.
VI - A obra
consagrada ganha o Prêmio Mardi Musical, ou seja, o Prêmio Roma. O patrocinador inicial da música (que a programou
no seu Mardi) recebe a estatueta Oscarita, de posse
transitória. E durante o próximo ano vira o ‘chefe’ do processo de apuração
e escolha.
FIG. 2 - Programa Encontro 3351 |
Se puder, sempre que convidado,
participarei de outros Mardis. Porque, aqueles que se propõem a escalar o Himalaia, atrás dos
picos e vales da Música Clássica, têm sempre gosto refinado e espírito aberto e
audaz. São pessoas especiais que vale a pena acompanhar e conversar. Quero
agradecer a todos os mardistas que me permitiram compartilhar de
uma de suas noites de aventuras.
Douglas, parabéns, belo exemplo de esperança e salvação.
ResponderExcluirQue esta ação inspire aos jovens a se aproximarem mais desta verdadeira e prazerosa linguagem universal.
Permita-me a ousadia de produzir uma versão para o tema Paulistano do trecho “respeito e fascínio; como um pedestre olhando para a imensidão do Himalaia.”
Versão: “respeito e fascínio; como os imigrantes de terras distantes, sem jornal, internet, ou mesmo TV, nos anos 60, descendo da condução na extinta rodoviária olhando para a imensidão dos arranha céus desta metrópole São Paulo.”
Obrigado pelo comentário, gostei da derivação que você deu ao assunto.
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