Nos tempos de Faculdade de
Filosofia, apenas no fim do curso fui prestar atenção no verdadeiro significado
por trás das idéias de digital e analógico. A dicotomia é velha, existe desde
que este bando de bípedes implumes e pretensiosos principiou a pensar, mas, por
dezenas de séculos, permaneceu invisível, como um veio ignorado e sem valor dentro da massa
de conhecimentos humanos.
Para melhorar o entendimento desses dois
critérios podemos brincar de classificar as coisas.
· A peça Hamlet é digital porque, com as mesmas palavras, pode ser montada em qualquer
tempo e lugar, sem alterações.
· A pintura Monalisa é analógica, porque é única, se deteriora e muda com o passar do tempo. O
sorriso da Gioconda torna-se cada vez mais misterioso.
· O Xadrez é digital, porque pode ser
interrompido e reiniciado sem qualquer perda significativa, basta anotar as
posições das peças.
· O bilhar é analógico, porque se
abandonado e alterado, não pode mais ser retomado em idênticas condições.
· Os jogos esportivos e de
habilidades físicas são analógicos.
· Os jogos de baralho, tabuleiro e
similares são digitais.
· Na música, a partitura é digital e
a execução é analógica.
Essas contraposições são riquíssimas e
curiosas, possibilitam horas de diversão intelectual.
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Foi apenas depois de 1936, quando Alan
Turing escreveu o célebre artigo (On Computable Numbers, with an Application
to the Entscheidungsproblem) que
continha a proposta do computador – tal como o conhecemos hoje – que as Ciências
da Computação começaram a se desenvolver. Junto com o advento da Informática
estas duas noções – analógico e digital - ganharam proeminência e notoriedade.
Começaram a ser mais bem estudadas e definidas, passando a ter um papel
preponderante em diversas disciplinas e ramos das atividades humanas.
No
dicionário, analógico é o adjetivo de
analogia, palavra que significa a “relação ou semelhança entre coisas ou fatos”. Em termos filosóficos o conceito analógico remete às coincidências e
paralelismos espontâneos encontrados nas leis e eventos da Natureza. Trata da correspondências,
emulações ou correlações entre fenômenos naturais completamente diferentes, mas
que apresentam comportamentos semelhantes. Indica também qualquer mecanismo ou aparelho
que afetado por uma lei da Natureza, por analogia, mede, explica ou reproduz outro
acontecimento distinto.
Assim,
por exemplo, o acúmulo de areia na ampulheta, ou a tensão da mola do relógio,
ou o volume de água na clepsidra são todos relógios, ou melhor, analogias variadas
que representam a mesma coisa: a passagem do tempo. Da mesma forma, a expansão do
mercúrio no termômetro representa a temperatura ambiente. Falando de Som, os micros
relevos dos sulcos das trilhas do Vinil no acetato representam os acidentes e
as características da Música.
Digital, segundo o dicionário, é relativo a
números. Pitágoras ensinou que número é a forma da mente humana entender a
Natureza. Operar com números é o exemplo máximo de racionalidade. Códigos digitais
são sempre construções artificiais, invenções da mente humana. Filosoficamente
o conceito digital pressupõe um
sistema racionalmente codificado de números ou símbolos, mais um conjunto de regras
convencionadas, a junção de ambos, código e regras, permite entender e atuar
sobre fenômenos da Natureza. Ou seja, trata-se de modelos teóricos para compreender
e modificar os acidentes e processos da Natureza. Importante: um modelo digital
é inteiramente desvinculado dos fenômenos que descreve. Rigorosamente, todo
código digital é uma ferramenta racional e cultural, cujo objetivo é entender e
operar, automaticamente ou matematicamente, com as ocorrências naturais.
A Língua, a Notação Matemática, os
Calendários, as Coordenadas Cartesianas são exemplo de códigos digitais. Pensando
em audiofilia (isto é, o hobby de ouvir música com equipamentos de alta e
altíssima qualidade), o padrão de indústria ‘redbook’ é um código digital que normatiza o armazenamento de sons
em CDs.
Nunca é demais repetir: não existe
qualquer relação nem analogia ‘natural’
entre os pontos de informação - marcas na superfície do CD - e os sons que eles
armazenam e reproduzem. Com outra tecnologia, a forma de registrar os pontos poderia
ser diferente, e com outro código digital o local e a configuração das marcas
mudariam.
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Para o universo digital, o demônio dentro
da garrafa é o ritmo. Meu melhor mestre de Português no colegial foi o
Professor Emir Macedo Nogueira, colunista e redator da Folha
de S. Paulo. Lembro que
ele dizia: “Prestem atenção no
ritmo. O ritmo é tudo. Quem não entende o ritmo, não se dá bem na vida.” Falando de CD e Vinil, de digital e analógico, o ritmo também é tudo. Num sistema de som completamente analógico o ritmo é único e estabelecido
pela rotação do prato do toca disco ou pelo giro do carretel de fita do
gravador. Todos os demais componentes do sistema obedecem criteriosamente aquele
andamento.
Infelizmente, o ritmo num sistema digital é assunto muito mais complicado
e espinhoso. Tanto para codificar (gravar) quanto para decodificar (ler) um arquivo
digital é preciso um chip. Ora, qualquer chip, efetivamente, é um computador
completo. E todo computador, no fundo, é uma ‘máquina de Turing’ clássica,
portanto um dispositivo de ‘estado
discreto’. Ou seja, uma máquina capaz de executar uma coisa diferente cada
vez que faz uma operação, sequencialmente. Cada passo (instância) executado é
um estado discreto (não contínuo) da máquina. Daí o nome.
Diferentemente, um motor é uma máquina
de ‘estado contínuo’, funciona sempre
da mesma forma, faz repetidamente a mesma coisa, um passo atrás do outro, sem
alteração. O computador realiza apenas uma pequena operação específica de cada
vez, porém pode fazer tudo muito rápido. Quem dita o ritmo, determina a
velocidade da operação, comanda a passagem de um estado discreto para outro é o
relógio do chip. O famoso e malfadado ‘clock’,
causa de tantos enguiços na reprodução digital.
Tenho um amigo, Marco Cezar – Cezarsky na vida virtual – um fantástico
artista e um mágico das imagens (entre outras coisas), que explica brilhantemente
as diferenças entre fotografia química (analógica)
e fotografia digital. Compara a analógica com uma rampa e a digital com uma escada. Não sei se é
possível ser mais simples no exemplo.
Frente aos sistemas analógicos, a reprodução da música digital, junto com as muitas vantagens
que oferece, carrega dois problemas de origem.
Primeiro. A codificação digital trabalha
com um conjunto finito de dados, portanto está condenada a uma forte
simplificação da massa musical. Porque, para converter a música em números, é necessário
dividir o acontecimento musical – contínuo – em inúmeros micros instantes.
Depois é preciso tomar exemplos periódicos da execução (samples), uma vez que guardar tudo, o fenômeno inteiro, é absolutamente
impossível. Essa operação é, necessariamente, redutora e resulta na consequente
perda da qualidade absoluta, por exemplo, na degradação da qualidade final do CD
frente ao Vinil.
O código ‘redbook’, adotado para todos CDs (SACDs, DVD-Audios e Blu-rays utilizam
outro), quando proposto, optou por parâmetros modestos e pouco audaciosos,
certamente por causa das limitações de processamento na época de sua adoção. Assim,
para registrar cada ‘segundo’ de música são selecionadas 44.100 amostragens (sample rate). Cada amostragem é
convertida num número digital de 16 bits (bit
depth). Em resumo, para cada ‘segundo’, temos apenas 44.100 micros instantes
armazenados com meras 65.536 possibilidades de amostragens diferentes. Muito
pouco para dar conta das infinitas peculiaridades da Música. Neste modelo também
foram feitos cortes arbitrários tanto nos graves quanto nos agudos, ditos
inaudíveis. É bom lembrar que o registro analógico é contínuo, integral e sem
intervalos ou saltos, portanto, como sabemos que entre cada dois números são
infinitas as frações possíveis, nos arquivos digitais temos uma redução grossa
e brava dos acontecimentos musicais.
Segundo. Como dito anteriormente, o
computador é uma máquina de ‘estado discreto’, com processamento sequencial,
degrau por degrau. Tudo isso comandado pelo ‘clock’ (o relógio interno). Qualquer sistema de som digital
atualmente tem diversos chips especialistas, dedicados às suas funções
específicas, e cada chip, necessariamente, tem seu próprio ‘clock’. Desgraçadamente, são exponenciais
os problemas de sincronização de tantos relógios diferentes, todos de alta
precisão.
Para agravar o quadro devemos lembrar
que o demônio da digitalite, é como um vaso de porcelana chinesa, uma vez trincado,
não dá mais para consertar. Se, em qualquer fase do processamento, o sinal analógico for digitalizado, jamais voltará
ao estado anterior. E o diabo é que os chips estão proliferando feito praga, o
mal pode estar escondido em qualquer canto.
Quero encerrar dizendo que não tenho a
honra, nem coragem, de pertencer à horda romântica e analógica dos vinilistas, minha
bússola aponta noutra direção. Sou um otimista, tenho esperança de alcançar uma
escada de degraus tão pequenos que possam simular uma rampa. Ao menos para os
ouvidos humanos. Por isso minhas fichas estão acumuladas nos arquivos digitais
de altíssima resolução.
Porém esse é outro degrau, a ser
galgado num próximo estado discreto.
Há uma divergência entre duas frases que escreveu: "A codificação digital trabalha com um conjunto finito de dados", e: "Por isso minhas fichas estão acumuladas nos arquivos digitais de altíssima resolução.".
ResponderExcluirOra, se a codificação digital é finita, jamais você ou qualquer um obterão arquivos digitais de altíssima resolução. A resolução sempre será igualmente "finita".
Muito obrigado pelo comentário.
ResponderExcluirExcelento texto Douglas. Nunca havia pensado antes dessa maneira. Qualquer dia vou juntar uns amigos e propor o jogo A/D!
ResponderExcluirNão concordo com o comentário do amigo anônimo acima. Se temos um conjunto finito, podemos ter uma altíssima, porém finita resolução.
Comecei tarde no mundo da audiofilia e ainda estou engatinhando no mundo analógico e vinílico. Quem sabe um dia abraço o mundo digital.
Mas o maior e mais rápido computador analógico do mundo nunca vai se tornar digital, o nosso cérebro.
Muito obrigado pela atenção. Tenho preguiça de procurar o CD na estante (entre 2000 CDs), então adotei a música digital.
ResponderExcluirMinha preguiça esta na hora de sair da cama. Ainda não atingiu meu quartinho do som, dos discos e cds.
ExcluirSaudações
Acho que é justo pedir a inclusão na avaliação de mais um facilidade propiciada pelos arquivos digitais: as audições comparativas: Por exemplo, tenho mais de 20 versões de Autumn Leaves, transitar imediatamente entre elas é uma brincadeira, os amigo adoram este esporte quando visitam minha sala. Do meu lado, vou à casa deles escutar setups perfeitos.
ResponderExcluirDouglas, os arquivos digitais podem ser manipulados ao bel prazer de seu usuário de forma que suas mais de 20 versões de Autumn Leaves podem se tornar facilmente, milhares de versões. Gostaria de saber seus parâmetros para considerar setups perfeitos. Se os setups dos seus amigos são perfeitos, então todos tocam igual ?
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